quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A formação do profissional de história e a realidade do ensino

Déa Ribeiro Fenelon


Tratar deste tema não é novidade pra mim. Tenho falado bastante sobre
isto, ultimamente. No encontro dos Alunos de História, no XI Simpósio da
ANPUH, na Paraíba e em outras oportunidades. Há, portanto, a certeza de
estar a me repetir em vários ângulos do problema, que afinal é de certa forma
delimitado, mas ainda assim considero válidas muitas destas observações, além
de gostar de aproveitar todas as oportunidades que se me apresentam para
refletir em conjunto, com profissionais e alunos de História, sobre o trabalho
que fazemos na Universidade, formadores que somos destes profissionais de
História.


- Que perspectivas estamos transmitindo a eles?
- De que concepções estamos falando quando se considera o seu
futuro desempenho profissional no ensino de 1º e 2º graus?
- E que dizer do ensino e da pesquisa na própria Universidade?
- Que diálogo estabelecemos com nossos alunos em relação às
posições e experiências sociais vivenciadas por todos nós?
- De que realidade estamos falando quando dizemos que a História
é importante porque nos ensina analisar a realidade para
podermos transformá-la?


Dentro destas indagações o eixo de minhas preocupações na tentativa
de contribuir para a superação do círculo vicioso a que nos levou a prática de
uma política educacional, que exprime e consolida uma determinada estrutura
de dominação social, passa por nossas concepções de ciência, de saber, de
produção do conhecimento, de nossa posição social, de nossa situação
enquanto “fazedores de História” em todos os sentidos.


Não tenho dúvida de que para fazer avançar qualquer proposta concreta
como professores de História ou formadores de profissionais de História temos
de assumir a responsabilidade social e política com o momento vivido. Para
isso seria necessário antes de mais nada romper com uma maneira tradicional
de conceber conhecimento, sua produção e sua transmissão. Isto significa,
para mim, em primeiro lugar, o posicionamento no presente, para sermos
coerentes com a postura de “sujeitos da História”. Se queremos avançar nesta
perspectiva temos de nos considerar como “produtores” nesta sociedade que
queremos democrática e não como simples repetidores e reprodutores de
concepções ultrapassadas.


E o que significariam estas concepções que considero tradicionais?
Comecemos por lembrar que no quadro atual da organização e da
divisão do trabalho intelectual a posição que ocupa a História exprime uma
hierarquia e uma classificação das ciências correspondentes a uma concepção
de saber/conhecimento, legitimadora da divisão social em compartimentos
estanques. Caberia a História, dentro deste quadro – o estudo do passado.
Estabelecendo uma primeira crítica, diríamos que esta maneira de organizar
o pensamento e a ciência realizou no nível de abstração, a separação daquilo
que para nós é indivisível e complexo, ou seja, a totalidade do social, dificultando ainda mais sua forma de apreensão, a pretexto mesmo de conhece-la melhor, de facilitar a apreensão do real.


Tal concepção de ciência domina grande parte de nosso mundo
acadêmico, ainda que muitas vezes revestida de novas formas e negando suas
origens positivas e cientificistas. Não nos esqueçamos, entretanto, de que ela
exprime uma determinada realidade social, sobretudo a partir da segunda
metade do século XIX, com todas as modificações e transformações da
sociedade industrial européia e ocidental. A partir desta visão deu-se
reconhecimento científico a uma separação entre trabalho intelectual e manual
surgida do próprio avanço do capitalismo. Desenvolveu-se o método científico,
fortaleceram-se as instituições acadêmicas e a partir desta perspectiva podese
reconhecer características de uma produção de conhecimento inteiramente
dissociada da realidade social.


Nesta produção, a existência concreta, a base real e material sobre a
qual se constrói o todo social não aparece. O conhecimento não é visto
como uma atividade social e a ciência assim produzida torna-se autônoma,
mesmo porque acaba sendo fruto de um esforço de reafirmação da
neutralidade e da isenção de pressupostos ou de concepções, que de acordo
com seus adeptos somente atrapalhariam a compreensão do real. Ainda que
contestada, revista, reformulada esta concepção busca sua hegemonia na
maneira de fazer e produzir a ciência e, muitas vezes, consegue se manter,
principalmente na Universidade e em especial em nossa disciplina, a História.
Além disso, ela não se submete e nem aceita críticas, porque analisar as
determinações sociais seria reconhecer e introduzir elementos estranhos e
acessórios a própria ciência , negando portanto a base de seu trabalho.


A partir de tudo isto, parece que o resultado desta produção conduz a
uma visão empiricista e fragmentada do social e ainda que buscando sua
organização conceitual, seguindo regras metodológicas e usando técnicas as
mais sofisticadas, acaba propondo em verdade novas subdivisões do social
em político, econômico, cultural, etc. Para isto o trabalho do cientista se resume
em investigar a realidade a partir de modelos de análise, em juntar os fatos
acontecidos e estes são sempre irrefutáveis porque comprovados pelos
documentos, consiste em organizá-los cronologicamente ou em torno de
conceitos e ai está pronta a ciência, no nosso caso, a História.


Muitas vezes, nem mesmo se questiona o caráter das próprias fontes
utilizadas tão preocupados estão os historiadores em comprovar sua
fidedignidade. Não se apercebem de que a própria organização dos
documentos e das fontes preservadas, guarda em si a marca de uma visão já
definida do processo, quase sempre a do dominador. Fragmentando o todo
social e propondo uma ciência que ao final deve ser objetiva e neutra,
desprovida de pressupostos, concepções e teorias, busca-se a verdade absoluta
que será conseguida pela soma das produções cumulativas de gerações fiéis a
tal tradição.


Entretanto, na atividade prática do historiador “tudo começa como o
gesto de selecionar, reunir e transformar em documentos” determinados
objetos distribuídos de outra forma. Na verdade, a tarefa do historiador é a
de produzir tais documentos, pelo próprio fato de recopiar, transcrever ou
fotografar esses objetos, mudando ao mesmo tempo, seu lugar e estatuto. O
historiador, portanto, não recolhe apenas os dados, ele constitui e é ele quem
dá vida ao fato histórico, definindo sua importância e organizando-o de acordo
com seu sistema de referências. Nesse sentido, Schaff já salientou com bastante
precisão a inevitável precedência da teoria ao fato histórico.


Se aceitamos então essa dissociação referida acima entre a ciência e o
social, sem a devida perspectiva crítica, estamos assumindo na prática um
modo de pensar a nossa disciplina, a História, e o seu ensino e a pesquisa,
dentro de um esquema tradicional, onde a Universidade é sempre pensada
como centro de produção do saber, ou como diria Michel Certeau, ela se
transforma no “lugar social” de onde falam os cientistas:


“Dessa relação entre uma instituição social e a definição de um saber
surge a personalidade notável... justamente com o que se denominou a
“despolitização” dos sábios, sendo necessário entender-se por isso não um
exílio fora da sociedade, mas a fundação de uma sociedade onde as instituições
políticas eruditas e eclesiásticas se especializam reciprocamente, não uma
ausência, mas um lugar particular numa redistribuição do espaço social" .


E assim a ciência que se produz neste espaço social está circunscrita a
ele, começa e acaba nele, produzida, consumida e criticada, revista e analisada
dentro de um círculo cada vez mais fechado que lhe determina o permitido e
o interdito. O Historiador se julga distanciado do social, concretizando assim
a distorção entre o fazer e o escrever a História. O conhecimento é visto
como algo passivo, despolitizado e sempre intelectualizado, e a História que
se produz dentro destes limites institucionais com esta perspectiva, não
consegue mais do que formar profissionais que serão os reprodutores destas
concepções, perspectivas, informações, saber, etc. Dentro da lógica do sistema
e da política educacional é isto o que se separa da Universidade, haja vista as
experiências que vivemos a respeito de Estudos Sociais, Educação Moral e
Cívica, etc. O que realmente se quer é a formação do profissional, sobretudo
o professor como o “vulgarizador” do conhecimento, que portanto não precisa
aprofundar ou aprender a refletir historicamente.


De fato, dissociado da prática, o fazer História se torna abstrato e a
História, enquanto disciplina, não faz mais do que reproduzir um conhecimento
desarticulado, despolitizado, fragmentado, especializado, cada vez mais
tomado como prática educativa destinada a desenvolver nos alunos o mito
da “memória nacional”, com seus ritos e maniqueísmos de violões e heróis.
Daí minhas indagações sobre o profissional que formamos.


Vejamos pois como funcionam, no geral, nossos Departamentos de
História. Na sua maioria são bastantes atomizados reunindo quando muito
áreas de estudo onde se congregam disciplinas afins, ainda submetidas á direção
de um professor titular ou responsável, que na prática assume as antigas funções
de professor catedrático. Quando não é esta a organização, ou se busca a
articulação das disciplinas de um mesmo semestre letivo, ou as chamadas
reuniões gerais para integração dos conteúdos das várias disciplinas e distribuição da carga horária e a atribuição dos professores. Estas reuniões acabam por se tornar mais um ato de formalismo acadêmico, onde tudo se discute, mas também tudo se aceita em nome do respeito à autonomia do professor. Em alguns departamentos existem também uma tendência ao exagero formal da organização didática, que pressupõe definição de objetivos muito bem articulados, conteúdos apropriados, critérios de avaliação, etc. Só que, às vezes, como camisa de força, ou então como simples cumprimento de formalidades burocráticas do preenchimento de formulários onde estes itens são apresentados. Daí a didática se torna estatística, não indaga a realidade dos alunos com os quais vai lidar, mesmo porque na maioria das vezes os planos são feitos sem a presença dos alunos.


No final, em todas estas formas de organização departamental muito
pouco se trata da discussão do essencial – que tipo de profissional queremos
formar, como encaramos esta formação, que objetivos devemos definir para
alcançar este propósito? De alguma forma, em muitos de nossos Cursos estas
questões parecem já estar resolvidas e o que resta é apenas “adequar”
disciplinas, articular conteúdos, discutir programas.


Podemos dizer mesmo que a maioria de nossos Cursos de História é
livresca, no sentido de que a História que transmitimos é a informação que
está nos manuais, consagrados o mito da palavra escrita e a confusão entre a
historiografia e o processo histórico acontecido. As discussões sobre os aspectos
metodológicos e teóricos são reservados aos Cursos de Introdução, Metodologia
e a Teoria ou Historiografia, quando existem nos currículos e os professores
de outras disciplinas estão eximidos de discussão metodológica, pois isto é
assunto de disciplina específica e seria até considerado “invasão de área”. Eles
são assim os professores da “História propriamente dita”, ou seja, lidam com
o processo histórico, só que cada um à sua maneira, sem realizar o diálogo
ou esclarecimento sobre o sentido e o significado de sua posição, do
direcionamento de seu curso para tal abordagem e não outra. Isto é deixado
para os alunos perceberem como se estivéssemos lidando com um tipo ideal
de aluno.


E ainda mais, nossos cursos quase nunca recorrem à prática de
investigação. Através dela se poderia aprender, sobretudo, a problematizar e
a questionar não apenas a historiografia no sentido da produção intelectual,
mas também a própria realidade concreta que nos rodeia, numa prática mais
sadia de ensinar a praticar a própria disciplina, olhando em volta, tentando
mostrar uma História viva, que permita aos alunos sua própria identificação
social. Ao invés disto, estamos simplesmente formando reprodutores se uma
ciência já pronta e acabada sem nenhum referencial teórico ou metodológico,
se não aquele das teorias já cristalizadas e estáticas. Com isto se perde o
sentido do dinamismo da História e se impede qualquer perspectiva de
compreensão da possibilidade de mudança e da situação do historiador
também como agente do processo, capaz de agir sobre ele e transforma-lo.
Sendo que um resultado desta formação é fácil constatar que o
profissional do ensino de História, o recém-formado, tendo de enfrentar a
realidade de uma sala de aula com 40/50 alunos, 30/40 horas semanais e
péssimas condições de infra-estrutura, para não falar do desincentivo da
remuneração aviltante, na maioria das vezes se sente perdido, não sabe o
que vai fazer. Passou 4 anos estudando a sua disciplina e de repente se vê
perplexo diante da realidade. Quase sempre não tem mesmo segurança nem
sobre sua própria concepção de História, de ensino e na confusão tenta
reproduzir o que aprendeu com a intenção de fazê-lo o melhor possível.
Sente-se perdido até mesmo quanto aos critérios de escolha do livro didático
a ser adotado, dentre a profusão de novos lançamentos com visuais modernos
e conteúdos antiquados.


Sente-se culpado, sua formação ainda é deficiente, precisa estudar mais,
ir para a Pós-Graduação ou para um curso de especialização e reciclagem... E
o círculo se completa pois a única segurança que lhe foi transmitida é a do
mito do saber, da cultura, dos dogmas da ciência, que estão nos livros, na
academia. Ao impacto do enfrentar o mercado de trabalho com todas as
suas complexidades e todos os seus desgastantes problemas estruturais, se
junta à insegurança intelectual da falta do conhecimento, da inibição para
qualquer proposta alternativa, porque fora dos padrões a ele impostos como
científicos.


Sua perplexidade vem também do distanciamento entre as propostas
de ensino de História que ele mesmo recebeu na Universidade e a realidade
da formação dos alunos com os quais tem de lidar. Quando entrou na
Universidade foi-lhe demonstrado, pela via das reclamações constantes, todas
as deficiências de sua formação: não sabe estudar, não sabe pensar, não sabe
tirar o essencial de uma leitura, não articula o pensamento, não está
acostumado ao diálogo, etc. Entretanto, a maioria das propostas de Curso
durante os seus anos universitários não levava em conta estas deficiências. Na
verdade, os planejamentos são quase sempre expressão daquilo que se
considera ser um curso de bom nível universitário, sem nenhuma consideração
quanto ao para quem se destinam. E dependendo do professor e sua
concepção de História o aluno acabará recebendo, ou uma formação voltada
para a exclusividade do factual empiricista, ou para o abstrato da teorização
muitas vezes excessiva. Nenhuma mediação entre estas propostas e a formação
anterior. Quando já professor, formado nesta colcha de retalhos, volta ao
ensino de 1º e 2º graus e não consegue se identificar quanto aos caminhos a
serem percorridos e muitas vezes repete o erro de sua formação: começa a
pensar nos alunos ideais, na escola ideal, etc. Professores universitários e
professores do 1º e 2º graus unem-se então para reclamar do nível dos alunos,
cada vez mais baixo, sem perceber que são suas propostas que estão
extremamente fora da realidade, não apresentam nenhum interesse específico
a não ser o grau de dificuldade. E é preciso lembrar que qualquer que seja o
nível dos alunos dentro da sala de aula é com eles que temos de lidar.
Quero também esclarecer que não estou discutindo as técnicas e os
problemas mais especificamente da didática da História, não porque os
considere menos importantes, mas porque minha preocupação neste
momento se volta mais para o conteúdo da História que estamos ensinando,
a concepção da História com a qual estamos trabalhando e que se exprime
nos resultados de nosso trabalho, quaisquer que sejam as técnicas e os recursos
didáticos utilizados.


Antes de abordar o problema por este ângulo quero explicitar posição
de que não ignoro os efeitos de uma política educacional que atinge não
apenas a área de História, mas mais especificamente toda a área de Ciências
Humanas. É evidente que não podemos ignorar os resultados de um ensino
planejado para corresponder às necessidades de reprodução do sistema
capitalista em que vivemos, interessado mais em consagrar situações existentes
ou formar elementos aptos a lidar com tecnologias já dadas, sem nenhuma
capacidade criadora, que não se preocupa com o necessário incentivo e
estimulo à pesquisa nas áreas básicas. Por todas estas razões faz das Ciências
Humanas o instrumento da reprodução ideológica do sistema. Daí a História
oficial, o controle dos programas, a diminuição das aulas ao estritamente
necessários, desdobramento da História em Estudos Sociais, Educação Moral
e Cívica e Organização social e Política do Brasil. Se das Ciências Exatas se
espera a formação de profissionais destinado ao controle da produção, das
Ciências Humanas se espera a formação de profissionais para a reprodução
ideológica dos valores dominantes.


Daí também uma legislação muitas vezes casuística, na medida das
necessidades de momento e que depois não sabe como lidar com os resultados
destas medidas: haja vista que o caso gritante dos Cursos de Estudos Sociais
criados com determinados fins políticos de esvaziamento das disciplinas
consideradas “perigosas”, incentivados por alguns anos e que diante da pressão
vinda da Universidade e da ineficácia da medida , estão a desaparecer e o
governo não consegue resolver nem mesmo o problema daqueles que
embarcaram na ilusão de um diploma mais rápido e mais fácil e agora precisam
lutar na Justiça para garantir seu espaço no magistério.


Ou, por outro lado, o incentivo dado à escola superior privada em um
determinado momento como forma de instituir o ensino pago, sem nenhum
planejamento adequado à realidade, vendo-se agora a enfrentar o problema
de milhares de profissionais com diploma na mão sem saber o que fazer no
mercado de trabalho. O sistema particular de ensino que não se propõe a ser
simplesmente a fábrica de diplomas, em que se transformam algumas escolas
e procurou desenvolver um ensino mais conseqüente se vê a braços com
sérias crises financeiras, enquanto os que optaram pela comercialização do
ensino, obtém lucros extraordinários, com cursos medíocres e salas
abarrotadas, explorando alunos e professores ao mesmo tempo.


Além disso, as questões práticas de ausência de recursos para o trabalho
didático, a carga horária excessiva para os professores e reduzida para a
disciplina histórica, a falta de articulação de um Plano de Ensino, a questão da
remuneração que obriga o professor a se desdobrar em um grande número
de tarefas, reduzindo sua capacidade criadora de renovação, além da
dificuldade de lidar com livros didáticos, são fatores que estão presentes em
nossas reflexões. De qualquer maneira o que desejo reafirmar é o fato de
que nossa luta por um tipo diferente de ensino estará sempre marcada e
circunscrita por este quadro e se nos decidirmos a nos lançar a ela, isto significa,
sobretudo, considerar que estes são os dados da realidade, estas são as
condições objetivas com as quais teremos de lidar e é dentro dela que devemos
delinear nossa tarefa. Basicamente estamos discutindo o que estamos fazendo
com o ensino da História dentro de todas estas limitações.


Partimos em nossas observações sobre o ensino da História dos resultados
obtidos nas correções de provas ao longo de todos estes anos. Não se trata de
realizar análises quantitativas de acertos e erro ou mesmo de avaliar o nível de
alunos e professores. Trata-se, isto sim, de procurar identificar algumas linhas,
alguns traços gerais que nos permitam detectar a concepção de História que
estamos transmitindo aos nossos alunos da Universidade e que eles como
futuros professores vão passar a seus alunos. Estamos assim, de certa forma
avaliando os resultados de nosso próprio trabalho na Universidade.
Uma primeira observação de caráter geral: o que se constata é na
maioria das vezes a inadequação das respostas em relação ao que se pergunta.
As generalizações são amplas, há sempre uma história a contar, qualquer que
seja a pergunta, o que pode ser atribuído ao vício de não deixar respostas em
branco ou a orientação dos cursinhos para que sempre se tente escrever algo
na tentativa de conseguir alguns pontos a mais, ainda que na base de
enrolação. Assim, o que se observa é a completa desarticulação de idéias,
fragmentadas em frases soltas a respeito de tudo que sabem de História, sem
nenhuma consideração pela especificidade da pergunta.


Desta maneira, o conhecimento do episódio e do factual existe e parece
sempre, até mesmo quando não solicitado. Ou, por outro, à simples menção
de alguns fatos ainda que o que se solicite seja a relação possível a ser
estabelecida entre eles e não os acontecimentos que sucederam, e aí que se
desenvolvem as respostas, demonstrando uma capacidade de discorrer sobre
os fatos, às vezes, bastante minuciosa e precisa com referência ao
extraordinário, ao episódio e até ao anedótico. São raros os casos em que se
consegue estabelecer entre os fatos mencionados alguma relação conceitual e
compreensiva.


Neste particular, é preciso dizer que, na maioria das vezes, a única
relação possível que os alunos conseguem estabelecer entre os fatos históricos
é a de causa e conseqüência, sem nenhuma percepção de relações ou
mediações. O acontecimento torna-se causa e conseqüência de outro,
separando-se os aspectos sociais dos econômicos e valorizando-se
sobremaneira o fato político, entendido como deflagrados do processo vivido.
Sendo o fato político o mais importante, cria-se em decorrência o personagem
que a realizou, decidiu ou optou e daí se passa aos heróis, aos grandes vultos,
como os reais personagens de História, vista também como uma sucessão
linear e mecânica de acontecimentos e personagens.


Mas há problemas bem mais sérios na linha do que estamos tentando
levantar aqui: que tipo de História estamos transmitindo aos nossos alunos? A
que aparece nas respostas e nas concepções explicitadas no discurso de alunos
e professores é uma acentuada visão da História, onde se destacam as figuras,
os indivíduos, os acontecimentos de cunho político, as grandes decisões de
governantes, a partir dos quais se constrói uma visão da História, de exaltação
do mais forte e do vencedor. 


Daí, é apenas um passo para a visão maniqueísta
de vilão x herói, representando o mal e o bem.


Desta maneira, a expressão desta concepção aparece, por exemplo,
vendo o processo de colonização com a origem de todos os males, do atraso
econômico. Portugal torna-se responsável por todas as maldades contra os
brasileiros sempre representados como intrépidos filhos do solo pátrio a lutar
contra o jugo da metrópole e sempre decididos a tornar o Brasil dono de seu
destino. Tudo em um processo linear, carregados de tonalidades de heroísmo
e atos de maldade, sempre por decisões incorretas da metrópole. Como se
separa a visão do econômico e do político das outras esferas de constituição
do social, as contradições e as incoerências aparecem, quando pelo lado da
formação da chamada etnia brasileira, se valoriza acentuadamente aquilo
que portugueses criaram de democracia racial dentro do território brasileiro.
Aí, então, os hábitos, a língua, a incorporação de costumes negros e indígenas
é apresentado como exemplo da maneira sábia como os portugueses souberam
conduzir a colonização dos trópicos.


Nesta mesma linha de contradições, veja-se a maneira como é abordada
a questão do negro. Sem falar da maneira como se utiliza os maus tratos aos
escravos como exemplo da maldade dos senhores de engenho, a escravidão
é sempre equacionada com maldade, atraso, mancha de nossa cultura legada
pelos portugueses. Em contraposição à introdução do imigrante europeu como
solução para o problema da força de trabalho, principalmente para os
cafeicultores, e é, por sua vez, apresentada como inovadora, introdutora de
novas técnicas de trabalho, de novos hábitos sociais, o imigrante sempre visto
como portador de cultura de idéias e, portanto, de progresso. E assim, o
trabalho livre se transforma na medida da recuperação moral da consciência
dos brasileiros, humilhados por serem ainda dos poucos países do mundo a
conservarem a escravidão como modo de exploração do trabalho. Importante
ressaltar que este tipo de visão é quase a transcrição literal dos discursos dos
agentes daquele momento da história brasileira. A classe dominante justificando
seus erros e suas necessidades com argumentos ideológicos, desprovidos de
sentido histórico real e que se transforma na história oficial que nossos alunos
repetem e transcrevem, já na segunda metade do século XX.


Embutida nesta concepção, aparece como traço dominante a idéia de
progresso constante e linear que pressupõe um destino final, sempre glorioso,
para o qual avançamos, todos os brasileiros unidos, vencendo os obstáculos
que se nos antepõem no caminho. Este vencer os obstáculos se coaduna com
a visão heróica acentuada anteriormente e daí surgirem os fatos notáveis, as
figuras proeminentes, os heróis, enfim.


Mais interessante é assinalar que dentro desta visão surgem algumas
tentativas de interpretação do processo histórico à base dos fatos enunciados
e ressalvando-se que, estas são as melhores respostas no conjunto de alunos
e professores, elas aparecem com um acentuado colorido nacionalista de
exaltação e ufanismo e do sentimento nacional que justifica todos os problemas
e dificuldades como causadas inicialmente pelos males do colonialismo e
posteriormente pelo imperialismo, inglês a princípio, norte-americano depois.
Nesta visão, acomodam-se, então, plenamente os ideais de um passado sem
conflitos internos, sem exploração e onde todas as contradições são sempre
causadas pelo fator externo, o “monstro do imperialismo”, que está sempre
disposto a nos impedir de sermos desenvolvidos. Os maiores problemas vêm
sempre de fora, a atrapalhar nosso desenvolvimento harmônico, que
internamente seria possível acelerar. Ainda que apareçam esporadicamente,
as noções de desenvolvimento, subdesenvolvimento e dependência, estas são
sempre tratadas de maneira a conduzir ao vício da oposição nacionalismo x
imperialismo.


E esta visão de uma História, sem derramamento de sangue, sem
conflitos ou contradições extremadas, procurando sempre colocar a viabilidade
do ideal de uma sociedade harmônica, com oportunidades iguais para todos,
mascara as verdadeiras contradições do social e obscurece a própria noção
de processo histórico, formado de avanços e recuos, dependendo da
correlação de forças em cada momento de sua constituição enquanto processo.
Fico me perguntando, às vezes, se a História que estamos transmitindo não
carrega, até com mais eficiência, os pressupostos que tanto criticamos na
Educação Moral e Cívica.


Visto o processo com a ênfase assinalada, desaparece a articulação do
Brasil com o resto do mundo. É uma nação, uma entidade isolada, lutando
para crescer em posição ao mundo inteiro, que só quer o seu atraso. Não se
compreende bem a realidade mundial e muito menos o lugar do Brasil dentro
dela, sempre encarado como pobre vítima do imperialismo e destinado a
futuro glorioso, se não fosse o colonizador e o imperialismo.


Poderíamos ainda extrapolar mais e falar de como, quase sempre, as
noções de tempo e espaço aparecem de forma confusa e são as mais precárias
possíveis. Não é difícil imaginar os absurdos que surgem nas respostas, na
tentativa de justificar questões mais abrangentes, ou que se solicita o
relacionamento de processos acontecidos em concomitância com os do Brasil,
tudo isto como resultado de uma visão mecanicista e linear que transforma a
história em um decorar de datas, acontecimentos, personagens, etc., não
conseguindo transmitir nem mesmo a noção de processo, fala-se de uma
História morta, na qual as pessoas não se reconhecem e nem se identificam e
o passado é apenas uma “memória nacional” a ser exaltada. Tudo no abstrato,
porque inteiramente desprovido de qualquer articulação com a vigência das
pessoas, dos alunos, etc.


E por último a mais importante das constatações. É fato que a maioria
de nossos alunos não consegue reconhecer a historiografia enquanto produção
intelectual do conhecimento, como realizada sob determinados e diferenciados
condicionamentos sociais, portadora, portanto, de concepções e visões diversas
sobre a realidade social sobre a qual se debruçam os historiadores quando
escolhem seu objeto de análise. Na verdade, acabam por confundi-la com o
que passam a considerar como o “verdadeiro processo histórico”, realizando
uma perfeita simbiose entre o processo real vivido e aquilo que se busca
conhecer dele, sem atentarem para as características da produção científica e
seus condicionamentos.


Colocados diante de questões que perdem a discussão de concepções
diversas, sobre determinados períodos ou acontecimentos – como a Revolução
de 1930, ou a própria concepção de Capitalismo – passa a discorrer sobre os
fatos ou acontecimentos relativos a estas questões, sem atentarem que estavam
exprimindo, muitas vezes, versões contraditórias provenientes de matrizes
metodológicas diversas, até mesmo no próprio conceito sobre a produção
científica.


Não é difícil perceber a confusão que reina na maioria destas respostas.
Os alunos conseguem repetir e reproduzir os livros em que estudaram,
sugeridos até por uma bibliografia dada, porque esta é sua formação sobre o
que é a ciência, ou seja, aquilo que está nos livros. Entretanto, não conseguem
estabelecer com esta bibliografia nenhuma relação crítica, metodológica, para
não dizer da pouca relação que estabelecem com o conteúdo da pergunta.
Os exemplos e as confusões são gritantes, Pirenne, Weber e Dobb são citados
numa mesma linha para discorrer longamente sobre as divisões do Capitalismo
em comercial, industrial e financeiro, com detalhes sobre a passagem de uma
fase a outra, com argumentos ora de um ora de outro autor, realizando uma
“salada metodológica” e sem conseguir responder à questão que na verdade
solicitava apenas que se identificasse duas concepções de capitalismo e os
argumentos de cada uma delas.


Não é difícil reconhecer nestes resultados os efeitos e os sintomas da
proclamada separação entre ensino e pesquisa, a que nos referimos, e que
teoricamente reconhecemos como perniciosa, mas que em nossa prática acaba
por se concretizar como linha de trabalho, mesmo porque não se tem muita
clareza do que seja o treinamento para a investigação. Grande parte de nossos
alunos são formados em História, mas não são capazes de elaborar uma
problemática de pesquisa. Tiveram contatos mínimos com qualquer tipo de
documentação e não aprenderam a trabalhar com ela, raramente
freqüentaram qualquer tipo de arquivo ou foram em busca de outras fontes
de investigação, aprendendo a questioná-las na forma como aparecem ou
foram encobertas, no conteúdo do que dizem, na situação de testemunho
de que são origem. Isto não se faz, em verdade, porque a maioria dos
professores, muitas vezes, jamais realizou este tipo de trabalho e tem sobre
sua tarefa de ensinar uma concepção que não difere da idéia de repassador
de conhecimento e de informações.


Por outro lado, alguns historiadores, que se preocupam com a teoria e
método de sua ciência, vêm primando por uma extrema utilização das
abstrações como forma de pensar historicamente, desprezando o empírico e
o concreto como tarefa menor e fundamentando sua reflexão e análise em
informações de segunda mão, sem questionar suas origens. O excesso talvez
em evitar o factual, de um arrolar de fatos ordenados cronologicamente, não
levará nunca à possibilidade de uma interpretação que consiga recuperar as
articulações e as mediações do processo histórico, estão nos conduzindo a
um impasse, muitas vezes, de difícil superação: parece que criamos uma
barreira que dificulta a aproximação do material empírico, ou a prática de
investigação meticulosa.


Se algumas concepções ou definições de outros cientistas sociais
conceituam o trabalho do historiador como sendo simplesmente a
recuperação do empírico e com isto pretendem reduzir nosso ofício a mero
coletor de dados, que as outras ciências sociais irão interpretar, isto não nos
deve conduzir ao extremo de rejeitar a tarefa como menor, inferior, ou de
menos importância. O que é preciso distinguir, mas também concretizar é
que não se trata de simplesmente reconstituir o empírico. O trabalho do
historiador comporta sim um trabalho que não pode e nem deve ser superficial
ou de segunda mão, mas uma verdadeira penetração direta na matéria
histórica.


Para compreendermos e fazer compreender o que é ser historiador é
preciso recuperar também o próprio sentido de uma concepção global das
ciências da sociedade. O enfoque diverso, ou a abordagem de ângulo
diferenciado, não exprime nenhum pesquisador ou cientista social do
abandono do processo concreto e antecipado para fundamentar suas análises.
Ou corremos o risco de fundamentar e elaborar nossa produção sobre
reflexões abstratas que não contribuirão para o esclarecimento do concreto e
do processo histórico.


Precisamos, entretanto, refletir um pouco além destas constatações.
Esta nova maneira de lidar com a História, esta dificuldade de articular teoria
e prática, não serão resultado de uma existência inteiramente dissociadas da
teoria e do método que alardeamos e ensinamos? Teoricamente concebemos
a História, enquanto conhecimento, como um processo de interação entre
teoria e prática, ou seja, o indivíduo que busca conhecer o processo histórico
está ao mesmo tempo fazendo a História do presente, e quando o faz a partir
de um condicionamento que é dado socialmente, isto é, formação, posições,
conceitos , pressupostos são frutos de uma concepção sobre a realidade. Na
prática, entretanto, creio que transmitimos, certamente porque é o nosso
cotidiano, e a nossa existência, uma concepção de História que busca verdades
absolutas, que precisava discutir e assimilar todo o conhecimento livresco já
produzido, que precisava estar em dia com todos os modismos de além-mar,
que precisava se encadear logicamente para ser “científica” e com isto acabamos nos distanciando cada vez mais de nossa realidade e do concreto que buscamos conhecer, entrando em contradição flagrante com a teoria e o método que abstratamente ou apenas do ponto de vista intelectual, dizemos adotar em nosso trabalho de profissionais da História.


Na verdade porque esta é a nossa prática, não conseguimos avançar
no conhecimento do concreto. Vivemos no mundo dos livros e da bibliografia
ou então dos papéis velhos e dos arquivos, nos esquecemos que a História se
faz a todo o tempo e apesar de nós, também. Pouco se consegue com esta
postura porque nos mostramos incapazes de abandonar uma perspectiva de
classe. Fazemos a crítica, mas não caminhamos muito no processo de
conhecimento, porque dissociamos nossa existência do mundo que nos rodeia,
não queremos lidar com a realidade, participar dela, identificar-se com ela e
vivê-la. Ao contrário disto nós encastelamos no lugar social da ciência e de lá
queremos falar como doutores em nossa disciplina.


Desta maneira a história que ensinamos está pronta e acabada, cheia
de verdades absolutas e de dogmas tradicionais e rançosos, porque na verdade
para a maioria a concepção de História é esta mesma de um passado morto.
Raramente o aluno é colocado diante do problema de tentar conduzir
qualquer investigação, raramente aprende a fazer ciência, a fazer História - e
fazer História significa lidar com a sociedade, objeto dinâmico e em constante
transformação, aprende a reconhecer seus próprios condicionamentos sociais
e sua posição como agente e sujeito da História. O saber é transmitido como
já resolvido, simplificado aos manuais, e certamente rotulado e transformado
em saber cristalizado, que no máximo pode ser superado, daí a constante
necessidade de reciclagem e atualização, mas que nunca é questionado em
seu próprio contexto, em sua contemporaneidade de produção, donde se
poderia mostrar o que se pode fazer da ciência que produzirmos, e como
também participar da sociedade em que vivemos.


Por isto estamos insistindo na necessidade de não apenas valorizar,
mas realmente começarmos a realizar a pesquisa e a produção, desde o curso
de graduação e de todos os níveis de ensino. Não simplesmente coletar dados
ou arranjá-los cronologicamente, mas o contato direto com as fontes, a
problematização do concreto, o necessário posicionamento no presente, a
busca de compreensão crítica de nosso passado, sem falsos dilantismos ou
simples prazer de erudição. E esta tarefa não entendemos como restrita à
formação do pesquisador com suas sofisticações de tarefa maior que o ensino.
O verdadeiro ensino sempre pressupõe pesquisa e descobertas. Queremos
um profissional de História no qual as pessoas possam se reconhecer e se
identificar, porque para nós a História é uma experiência que deve ser também
concretizada no cotidiano, porque é a partir dela que construiremos o hoje e
o futuro.