segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Trajetórias e histórias do rock em Pouso Alegre/MG (1985-2010): da garagem ao triunfo

Alexandre Lopes Costa[1]
Ana Eugênia Nunes de Andrade[2]


RESUMO

O artigo “Trajetórias e Histórias do Rock em Pouso Alegre/ MG (1985-2010): Da garagem ao triunfo” tem como objetivo trazer uma nova abordagem sobre a manifestação cultural. Este movimento é constituído por apreciadores e músicos ligados ao rock e a subgêneros do estilo. Através da História Oral e da análise de fontes como cartazes buscamos levantar questões que permitissem um novo olhar frente aos seguidores do movimento. De acordo com os depoimentos e informações contidas nas fontes de pesquisa foi possível observar a existência de um movimento que luta contra o preconceito e estereótipos de julgamentos, muitas vezes, feitos de forma equivocada pela sociedade. Percebeu-se a existência de estratégias dos sujeitos integrados ao movimento para a permanência, resistência e sobrevivência deste. Há também rupturas que ocorrem durante o período estudado como a falta de apoio financeiro e de espaços físicos para realização de shows, bem como a inclusão do movimento na cena cultural da cidade.

Palavras-chave: Cultura. Memória e Rock.

O artigo intitulado Trajetórias e histórias do Rock em Pouso Alegre/ MG (1985-2010): da garagem ao triunfo procura compreender as permanências e rupturas que permeiam o movimento na cidade de Pouso Alegre, sul de Minas Gerais, buscando entender as estratégias de sobrevivência dos seus integrantes.

O Underground pode ser entendido como submundo, ou seja, “abaixo” do mainstream[3]. Esta cena opõe-se a hegemonia na produção artística e a uma forma única de arte sustentada pelas elites da sociedade. Tudo que não está na mídia e não é comercial, diferentemente do popular ou da massificação é considerado Underground.

O termo “The Undergrounds”, também foi usado para os movimentos de resistência ligados a Segunda Guerra Mundial. Posteriormente, este termo, foi aplicado aos movimentos contra culturais, surgidos na década de 60. A partir daí, este passou a designar várias subculturas, as quais são importantes para melhor compreendermos esta pesquisa que envolve  os caminhos do rock.

Estas diversas vertentes do estilo estão inseridas dentro do tema e surgiram mediante a prosperidade econômica, o desenvolvimento do modelo de estado do bem-estar social, a expansão das indústrias culturais e dos meios de comunicação de massa, a maior oferta de bens de consumo e das atividades de lazer. Através destes fatores, se forma uma nova condição, na qual, a juventude busca liberdade e também seu pertencimento, sua identidade.[4]

Somente em um segundo momento, percebemos que com a chegada de novas tecnologias e da internet, melhoraram um pouco o acesso a essas informações. Essa troca se faz importante para a resistência e para a sobrevivência de grupos que engloba gírias, códigos, símbolos, tipos específicos de roupas, ritmos musicais, espaços undergrounds, eventos, bandas, etc.

Essa diversidade de elementos é importante, em nossa tentativa de compreender e entender a formação, as práticas e as representações destes grupos. O historiador Roger Chartier[5] nos lembra que a realidade social é construída por “esquemas” de representações em acordo com os interesses de grupos sociais, e são responsáveis pela criação de “símbolos”, as quais a realidade ganha sentido, tornando-se inteligível. Logo, todas as relações sociais são intermediadas por representações.[6]

Considerados por diversos autores como “tribos”, ou “grupos urbanos contemporâneos”, que contrastam em nossas cidades nos dias de hoje. Essa fragmentação ocorre com mais freqüência a partir dos anos 80, e no Brasil, as portas se abrem ao estilo em meados desta década.

Nosso objetivo é fazer uma reflexão acerca do movimento, observando as práticas e representações sociais e culturais através de materiais de divulgação como cartazes, panfletos que nos possibilita perceber, as dificuldades existentes para permanência do movimento e de algumas bandas, assim como as transformações ocorridas dentro do movimento, como falta de apoio, e de espaços na cidade bem como o preconceito existente da sociedade de uma forma geral, para com o movimento e seus integrantes.

Buscamos entender as transformações ocorridas dentro do movimento underground na cidade de Pouso Alegre entre os anos de 1985 a 2010, observando os diversos elementos que o constitui, a maneira que os integrantes buscam seus espaços e se envolvem na construção do movimento. Thompson[7] alerta para observarmos “os modos de fazer, as construções destas manifestações”, as permanências e rupturas existentes no movimento.

Ao observamos os depoimentos e os cartazes dos eventos, percebemos as dificuldades enfrentadas para a sobrevivência do movimento onde a falta de apoio e até mesmo a existência de um forte preconceito, dificultam as realizações e a busca por espaços, bem como integrar o movimento aos eventos culturais da cidade.

As fontes para a realização deste trabalho nos permitiram compreender um pouco da história deste movimento, analisando depoimentos, cartazes e fotografias. Isto nos possibilitou perceber algumas questões que nos trazem a inquietação, como certos julgamentos e pré- conceitos e até mesmo uma rejeição por parte da sociedade para com o movimento.

A História Oral é de suma importância para revelarmos algumas lembranças de nossos depoentes, o que nos ajuda a revelar fatos importantes para nossa analise:

“A história oral seria inovadora primeiramente por seus objetos, pois a atenção especial aos dominados aos silenciosos e aos excluídos da história mulheres, proletários, marginais etc. Em segundo lugar seria inovadora por suas abordagens que dão preferência a uma “história vista de baixo” atenta as maneiras de ver sentir e que as estruturas “objetivas” e as determinações coletivas prefere as visões subjetivas e os percursos individuais numa perspectiva decididamente “micro histórica”.[8]

Assim faremos uma leitura resignificando uma breve história do rock em Pouso Alegre, trazendo a visão de músicos, organizadores de eventos e do público em geral que apreciam o rock e o tomam como parte significativa de sua vida. “Thompson[9] retrata o que considera uma cultura tradicional rebelde. E identifica uma consciência dupla que resiste, em nome dos costumes, às inovações econômicas e sociais do avanço do capitalismo.”

Existem, os que aceitam, e os que contestam a abertura econômica e política, não aceitam o capitalismo como forma de sistema econômico e as conseqüências que ele traz.

Acompanharemos a partir deste momento as mudanças que ocorreram dentro do movimento na cidade de Pouso Alegre. Vamos conhecer através das entrevistas, cartazes e fotografias, as bandas e a cena local, as estratégias usadas para conseguirem informações e adquirirem fitas k7 e vinis. Também perceberemos o quanto era caro se ter um instrumento musical para se formar uma banda.

As primeiras informações sobre bandas de rock em Pouso Alegre, que foram obtidas através de história oral, datam do fim dos anos 60 com Pedro Tiburcio que de maneira informal ele nos conta: “Em 1968 eu tinha uma banda aqui em Pouso Alegre já, chamava Tulipa Negra, agente gostava do Classic rock, Beatles ,The animals, The Who, meu sonho era tocar guitarra, era viver de música, agente gostava muito de rock n roll”.

Em seguida temos uma banda que mesmo não sendo de origem pouso alegrense marcou presença na cidade, a banda Recordando o Vale das Maçãs. Ela foi formada em 1973. Em 1975 o grupo foi formado por Fernando Pacheco tocando guitarra e violão de 12 cordas; Fernando Motta no violão e percussão; Luiz Aranha tocando violino; Moacir Amaral na flauta; Eliseu de Oliveira (Lee) nos teclados; Ronaldo de Mesquita (Gui) tocando contrabaixo elétrico; Milton Bernardes na bateria; vindo de Santos – SP os músicos Fernando Pacheco, Fernando Motta e Domingos Mariotti, passaram por Ouro Fino, fundaram a banda e trouxeram para Pouso Alegre seu estilo diferenciado de fazer música, com o ambiente musical inspirado em experiências com o contato com a natureza. Outros músicos  da cidade demonstraram interesse no trabalho e mais tarde fora convidados a  se juntar à banda.

O Recordando o Vale das Maçãs voltaria aos palcos na cidade de Pouso Alegre alguns anos mais tarde, pois em 2007 a banda volta às atividades com uma nova formação e aos palcos pouso alegrenses. O Teatro Municipal de Pouso Alegre e o Conservatório Estadual de Música Juscelino Kubistchek da cidade foram palco de diversas apresentações da banda, como nos conta Giuliano Tiburzio:

Em dois mil e seis, quando eu fui pra faculdade de música, eu, Tom Zé, eu conheci um outro tecladista lá, eu queria montar um trio progressivo, aí a gente chamou o Pacheco pra trocar guitarra. Aí ele incorporou a gente a no “Recordando” o que é o rock progressivo, tradicional. E a gente incorpora este projeto né, recordando e então desde então a gente ta no “Recordando o Vale das Maçãs,” tocar progressivo acho que é mais difícil do que tocar metal.
 
 Uma das primeiras bandas a tocar rock pesado com influências da época na cidade foi à banda Di metal. Por volta de 1978 eles ensaiavam no centro da cidade, próximo a Igreja matriz, local onde havia uma padaria conhecida como “Padaria Central” e onde hoje funciona um supermercado com o mesmo nome. A banda formada por Nicholas, Geraldinho, Marquinho e Nicinho foi um marco no início do movimento underground na cidade, influenciando as gerações posteriores na cidade e tocando um pouco das principais influências da época.

Nossos depoentes falam com ares de saudade das lembranças que têm da época, um momento de recordações de bons tempos onde o rock na cidade estava apenas engatinhando.

As memórias são, portanto experiências historicamente construídas constantemente modificadas e experiência uma criação constante da memória que faz o passado servir para fazer o presente. Pensar memória experiência e diversidade cultural é fundamental para discutirmos o processo histórico.[10]

Nesta perspectiva as lembranças, recordações e narrativas de experiências vividas pelos nossos depoentes, foram atualizadas para o presente, tentando assim buscar novos significados, observando sempre as transformações e o “não dito”.

Em entrevista realizada com Fabiano[11], integrante da banda Black Birds, Fabiano nos fala melhor de detalhes da vestimenta da época e de suas influências:

Eu comecei a tocar escutando as histórias do Di metal, falaram pra mim que o Nicinho pra mim que o Nicinho era um cara muito loco e eu cheguei a inicia um esquema meio que paz e amor, que nem eles no rock’n roll, assim fora do da geração pouso alegrense, sociedade em geral, achava que era ideologia de vida entendeu. Falaram, pra mim que o Nicinho cara, andava com um teve uma época que ele foi pros EUA e quando ele voltou ele voltou  pirado mas antes dele ir pros EUA   ele já andava assim , com tamanco calca de boca de sino sem camisa de colete cabelo solto loiro, e queria ser confundido com o Robert Plant (risos) Ele andava de calça santropê que nem o Robert Plant, boca de sino, ele queria ser confundido com Robert Plant ,O começo foi eles, O Di metal, em 84 ou 85 mais ou menos[12]

Na entrevista Fabiano nos fala sobre o vocalista Nicinho do Di Metal e sua influência pelo rock n roll que na época começavam a estourar como o Led Zepellin, citando o nome do vocalista Robert Plant. O rock em Pouso Alegre teve um período de grande movimentação, segundo nossos depoimentos. Depois do Di metal, surgem muitas bandas, os shows aconteciam no antigo Cine Eldorado, no centro da cidade de Pouso Alegre, na esquina da rua Comendador José Garcia com a Rua Adolfo Olinto, uma rua abaixo da praça principal da cidade.

Outra banda que se destaca já no início dos anos 90 foi o Black Birds, na entrevista com Adriano ele nos conta sobre:

O Black Birds começou fazendo uns covers, mas logo gravaram um cd com músicas próprias. Marcelo Rosa e Fabiano Lobão “apelido que eu dei” nas guitarras, Tutu no vocal, Eliezer Cascão na batera e Claudemir no baixo. Os caras eram muito bons mesmo. Tive o prazer de fazer um show com eles no antigo Varanda, na boate que ficava no subsolo. Na época, o Fabiano tinha uma guitarra Shark, uma coisa que impressionava as meninas. Tempo bom aquele.[13]

Em Pouso Alegre saiu uma excursão para o Rock n Rio I, o qual foi o estopim para a explosão definitiva do rock no Brasil. Algumas curiosidades sempre acontecem nestas viagens e esta não seria diferente. Fabiano não retornou com a excursão do rock n rio, ele ficou por lá por mais quatro dias, apreciando a cidade, porém ele se esqueceu de avisar os colegas que desesperados tentavam localizá-lo. 

Neste mesmo período alguns políticos, candidatos e seus partidos, traziam para seus comícios bandas do cenário pop rock e do rock nacional para tocarem em Pouso Alegre como relatam nossos depoentes. Nesse período bandas como Barão Vermelho, Ultraje Arrigor, Titãs e RPM tocaram na cidade, aumentando ainda mais alguns conflitos que já existiam na mesma. Ao entrevistar Gian[14] uma das figuras mais presentes na cena rock n roll em Pouso Alegre, ele conta um fato curioso acontecido em um dos shows em Pouso Alegre:

Um fato curioso aconteceu no show da banda Titãs, a apresentação ocorreu de baixo de muita chuva, e o publico estava curtindo mesmo assim, uma “roda” se abriu e pessoal  estava agitando em frente ao palco, como de costume né, balançando a cabeça, empurrões, socos no ar,  como em todos os shows de rock, sem violência, quando sem entender o que estava acontecendo a policia resolveu intervir e dispersar o público agindo com violência, cassetetes, socos e chutes foram dados contra o povo, quando a banda parou de tocar  e eu me lembro certinho o vocalista perguntando o que esta acontecendo aí vamos parar gente, abuso de autoridade não.

E então a banda volta ao palco e toca com ar de provocação um de seus sucessos na época a música chamada Policia[15]:

“Dizem que ela existe
Prá ajudar!
Dizem que ela existe
Prá proteger!
Eu sei que ela pode
Te parar!
Eu sei que ela pode
Te prender!...
Polícia!
Para quem precisa
Polícia!
Para quem precisa
De polícia...(2x)
Dizem prá você
Obedecer!
Dizem prá você
Responder!
Dizem prá você
Cooperar!
Dizem prá você
Respeitar!...
Polícia!
Para quem precisa
Polícia!
Para quem precisa
De polícia.”


A música fala da repressão policial que ainda ocorria no país, na tentativa de controlar a liberdade de expressão. A letra e o estilo agressivo é uma forma de protesto contra um sistema repressivo e nos mostra uma forma de abordagem policial repressora e o abuso de poder. Ela também faz uma sátira ao sistema de segurança no Brasil. A música é tocada em um ritmo acelerado com três acordes simples, a batida lembra o punk rock de bandas como Ramones, The Clash, entre outras. 

As bandas que faziam a abertura desses shows eram bandas locais como o Black Birds e a Alma Azul, elas se apresentavam na maioria das vezes para um grande público. Esses shows marcaram o rock na cidade aconteciam muitas vezes em lugares abertos amplos com um som de qualidade alugado para os comícios, que acabaram ajudando no surgimento de mais adeptos do rock na cidade e inserindo Pouso Alegre no cenário do rock nacional. A banda de Fabiano foi a banda de abertura nos anos seguintes para as bandas Barão Vermelho, The Falla e Viper  e gravou também uma faixa para o CD- ROM da Esquadrilha da Fumaça. Logo em seguida vieram bandas como: Viper, Garotos Podres, Dr.Sin e Angra que se apresentaram em uma casa de shows chamada Varanda, local um pouco mais afastado do centro da cidade.

A partir de 1985 a cena começa a movimentar em Pouso Alegre, a banda Black Birds e Alma Azul fazem apresentações mais freqüentemente na cidade, em lugares como a danceteria Maracanã. Alguns locais viram ponto de encontro dos headbangers, como bares, lanchonetes, praças e o conservatório estadual de música de Pouso alegre, onde muitos músicos estudaram, e que dali saiu muitas bandas que fizeram parte da cena em Pouso Alegre. O conservatório chegou a ser utilizado por algumas bandas para realizarem seus ensaios como nos conta Fabiano:

Nós conhecíamos o segurança e os horários que a sala de ensaios estava livre, daí esperavam lá fora, eu era aluno e já sabia os esquemas passava ali observando enquanto via que estava livre pegava a chave ia La fora chamava o resto do pessoal e trancávamos na sala de ensaios por horas, o pessoal queria morrer com a barulheira , mal sabíamos tocar ainda, era só o começo.


Fabiano nos fala de detalhes sobre marcas da época e suas estratégias para conseguir ensaiar e tocar dentro do Conservatório, na época havia pegado fogo e foi quase todo queimado, restando apenas alguns instrumentos e nada do prédio, que foi reformado apenas muitos anos depois, para novamente se instalar o Conservatório Estadual de Música Juscelino Kubitschek.

Apesar da existência de um Conservatório Estadual de Música, o espaço para o rock sempre foi muito pequeno e o preconceito sempre existiu até mesmo dentro de uma cena musical. Os locais onde as pessoas frequentavam eram diversos. Cada época teve seus lugares principais, como o Bar Mucho Loco (Bar do Robinson), o Bar Woodstock, o Bar do Raul, Varandinha, Varanda, Banana Monkey, Bar 18, entre outros.  Eram pontos de encontros freqüentados por apreciadores, músicos e o público que gostava do rock na cidade.

Na imagem abaixo é apresentado um cartaz de um evento onde a banda Black Birds juntamente com a banda Toque de Midas, tocaram no Bar Varandinha, no bairro Esplanada. Percebemos que o patrocínio praticamente não existia, no cartaz apenas havia um apoio de uma marca de cerveja ao dono do estabelecimento que negociavam descontos nas bebidas. O cartaz é simples, impresso com apenas duas cores como podemos observar.


 Cartaz show realizado no Bar Varandinha. 1994

No cartaz abaixo observamos a composição gráfica em apenas duas cores, preto e vermelho, que era o mais barato na época. Porém já é possível perceber alguns apoios, mesmo que de empresas de amigos dos músicos como o também vocalista Tutu Cabeleireiro. Notamos também que os outros anunciantes comercializavam produtos voltados aos jovens como tênis, roupas e lanches.


     Cartaz do show realizado na Danceteria Maracanã anos 90

  Release da Banda Os Neuza 1993

No release percebemos a abrangência de estilos, as influências e a proposta descompromissada da banda, pretendendo apenas tocar rock n roll e seguir seus ídolos, se sentindo bem tocando o som que gostavam.


 Os Neuza: apresentação na Escola Estadual Dr. José Marques de Oliveira

A juventude buscava a liberdade e as formas de se expressarem eram diversas, além do cabelo comprido, as vestimentas. Eles queriam festejar, sentirem-se livres, queriam mostrar a existência de uma liberdade de expressão, ir contra os estereótipos e os preconceitos existentes na sociedade.
As escolas sempre tiveram um papel fundamental, sempre abrindo espaços e deixando as bandas se apresentarem. Estes eventos culturais se tornam importantes para a formação e a integração social e cultural dos alunos. Mas nem toda escola era assim muitas escolas conservadoras não deixavam bandas de rock se apresentarem. Nem mesmo alunos entrarem de camisas pretas de bandas.


Escola Estadual Dr. José Marques de Oliveira alunos curtindo o rock da banda 'Os Neuza'

Na imagem observamos as formas de curtir dos jovens, um clima festivo de descontração sem violência, apenas se expressando e festejando o dia dos professores. Percebemos também que a fotografia foi retirada em um ambiente escolar, a Escola Estadual Dr. José Marques de Oliveira, uma das principais e mais antigas escolas de Pouso Alegre.

As bandas na região também eram muitas e sempre que podiam faziam apresentações por aqui, como uma das bandas mais antigas do underground mineiro o Corpse Grinder de Machado, cidade vizinha a Pouso Alegre. As bandas passam a surgirem nas garagens, nos novos bairros da cidade, como o bairro Esplanada e Árvore Grande de onde vieram muitas pessoas de fora, como de São Paulo e do interior em busca e emprego, uma vez que grandes indústrias se instalaram na cidade nesse momento e a procura por mão de obra fez com que ocorresse um aumento significativo da população de Pouso Alegre.

Dentro do movimento existem diversos fatores que devem ser analisados, como a música como forma de expressão e de contestação, muitos dos integrantes ao movimento são trabalhadores que não têm tempo para estudarem no conservatório, mas também usam a música e o instrumento como uma ferramenta para se expressar, para se sentirem livres ou apenas por gostarem do que fazem.

Ao entrevistar Guilherme[16] dono de um bar em Pouso Alegre, voltado para o público do estilo rock. Pessoas de todas as faixas etárias vêm de bairros mais afastados para se divertir, os freqüentadores são de todas as classes econômicas, eles discutem e conversam sobre temas diversos e trocam informações sobre música. Guilherme nos conta mais sobre a história do rock na cidade e fala também de nomes importantes tanto de bandas quanto de músicos que desde a época estão envolvidos no meio, incluindo o entrevistado:

Eu não sou músico, mas sempre estive entre eles, sempre gostei muito do rock na época agente trocava fitas k7, vinil, e tínhamos pouca coisa, era muito caro, hoje não hoje ta tudo mais fácil, mas então Lá por volta dos anos 1972,1973, sempre tinha uma banda tocando nos barzinhos no teatro, no Clube Literário, agente tava em todos , tinha muita gente que gostava e as bandas eram muito boas , tinha outros bares também, até no uirapuru , tinha a Shadows era uma casa de show bacana, as bandas tinha o Di Metal do Pacheco, tinha Black Birds do Fabiano Lobão, o Alma azul do Toledo daí depois veio à censura, os pais não deixavam os filhos saírem , eu saia mesmo assim.( risos) tinha muita coisa boa, lembrei-me do Imbuia, do Mesquitão, não era um rock mas fez parte também, tinha o Space Invaders os filhos dele, tinha o Recordando o vale das maçãs do Pacheco também tocava progressivo de primeira vieram de santos pra cá, em seguida já veio às bandas de rock mais pesadas influenciadas pelo Heavy Metal dos anos 80 como, Mr. Wizard do Raposão, O Ahura Mazda  do Maurão, são muitas viu era muito legal...[17]

Guilherme fala com ar de saudade e emocionado recorda dos amigos, os quais hoje ele recebe em seu bar sempre ao som do rock‘n’roll. Ele se diz feliz por relembrar esse tempo e acredita que antigamente era mais difícil fazer parte e gostar de rock, já que o preconceito era maior e existiam maiores dificuldades de comunicação e de troca de informações sobre novidades de músicas e bandas, além da situação financeira que não permitiam a aquisição de discos e materiais das bandas que mais gostavam.

Em Pouso Alegre, a cena underground sempre foi agitada, porém sem muito apoio. Havia muitos artistas, mas poucos espaços para que eles pudessem se apresentar, causando assim um problema para os músicos e pessoas envolvidas na arte e cultura de modo geral.

A cena alternativa também era forte, pois nem todos gostavam de rock pesado, muitos também se expressavam com letras próprias e som menos pesado, porém com letras que também faziam críticas a problemas sociais e a realidade em diversos contextos.
        
Como observamos nos cartazes, o apoio das bandas e dos eventos, sempre foi muito ruim por parte de setores públicos, desde o surgimento do movimento até bem pouco tempo atrás, como podemos ver no cartaz da primeira edição do evento Triumph of Metal realizado no ano 2000.

A primeira edição do Triumph of Metal foi idealizada ainda no final do ano de 1999 e foi efetivamente realizada no dia 09/04/2000, contando com a participação das seguintes bandas: Tuatha de Danann, Corpse Grinder, Punishment, Mr. Wizard, Menorah e Seventh Steel. Eu e Gustavo de Oliveira demos esse ‘ponta pé’ inicial. O evento surgiu da necessidade (na época) de suprir uma carência de festivais de Rock/Metal aqui na cidade de Pouso Alegre/MG. [18]


  Cartaz da 1ª Edição do Triumph of Metal realizado em 2000                   

Percebemos no cartaz da primeira edição do evento a presençade bandas locais e de cidades da região como Machado, Paraguaçu e Varginha, um dos apoiadores faz questão de mencionar com destaque, o apoio a cultura. Observamos também a questão social e a preocupação dos organizadores em fazer em todas as edições do festival e de outros eventos, arrecadações de alimentos não perecíveis. 1 kg por pessoa chegando a arrecadar uma quantidade significativa que era repassada as instituições de caridade da cidade.
A repercussão da 1ª edição foi bastante positiva e o Jornal Sul das Gerais publicou em 24/04/2000 um texto bastante elogioso em sua página 06, conforme reprodução abaixo:


Matéria no Jornal do Estado, comentando sobre a primeira edição do evento

No texto do jornal podemos perceber os elogios e a confirmação que o evento foi em clima de confraternização e respeito. Percebe-se também que quem escreveu a matéria coloca sua opinião sobre a visão da sociedade para com o rock, uma visão preconceituosa e com estereótipos. Os patrocínios foram todos de empresas particulares, com exceção a Associação Comunitária de Marcos Campanella, dentista e vereador, envolvido no meio político da cidade e proprietário de uma rádio comunitária, que posteriormente cedeu um espaço em sua rádio Nova FM para a realização do programa Long Live Rock que acontecia todo sábado no período da tarde, e só tocava rock n roll.

Três anos depois da realização da primeira edição, os organizadores do evento, se esforçam para dar continuidade ao evento, com a responsabilidade de melhorar ainda mais, tanto em relação ao som fornecido às bandas, quanto ao espaço físico oferecido ao público e a divulgação, pois o evento estava ganhando nome e a tendência era de crescer cada vez mais.


     Cartaz da 2ª Edição do Triumph Of Metal Festival 2003

Na segunda edição observamos a mudança no papel do cartaz e melhor qualidade na impressão e nas cores do cartaz. Também há o aumento significativo do número de patrocínios, os apoiadores culturais são empresas e o comércio local. Nota-se que em nenhum espaço existe órgãos públicos, apoio a cultura ou da prefeitura local.

Muitas foram às dificuldades enfrentadas pelo movimento e pelas bandas, com relação a essa falta de espaço para se apresentar. Devido ao estilo agressivo e pesado e distorções com uma bateria forte e rápida, formando uma música de volume alto, o que incomodava muito a população, os vizinhos dos locais de ensaios, os vizinhos das casas de shows e o público em geral, criando-se então, uma tensão e um conflito por espaços. Muitas vezes a polícia foi acionada para chamar a atenção dos organizadores ou donos de estabelecimentos e locais de ensaios, mas a Lei do Silêncio sempre foi respeitada e quando solicitado, o evento era imediatamente encerrado, sem maiores problemas. No depoimento de Rodrigo, ele nos fala sobre as características dos eventos e dos headbangers:

Em nenhum evento do movimento underground ocorriam coisas desagradáveis, como brigas, depreciações, roubos ou quaisquer outros tipos de ato contra lei, o pessoal parece ser bravo, com cara de mal, vestido de preto e tal, daí você vai conversar com o cara o cara é uma “moça”(risos)  no bom sentido da palavra é tudo gente fina[19]

O que nos leva a entender, que as pessoas que gostam do som e do movimento são unidas, onde os integrantes se respeitam e se unem em torno do estilo musical. Aumentando a força com intuito de não deixar nunca o movimento acabar e fazê-lo crescer sempre e a cada dia mais.


       Cartaz da 3ª Edição do Triumph Of Metal festival – 2004

No cartaz da terceira edição apresentado, percebemos uma redução significativa no número de patrocínios e apoios. No centro do cartaz, a imagem de uma mulher semi-nua, não foi muito bem aceita, causando desconforto a comerciantes locais.  Talvez um dos motivos para tal redução e também pelo fato de o evento ter sido realizado em um espaço curto de um ano de intervalo apenas de uma edição pra outra, o que é comum em eventos de outras cidades.

A terceira edição do evento foi realizada com bandas de maior expressão, na cena, em um dos espaços de maior capacidade da cidade, a casa de shows chamada Planeta Azul. Uma casa própria para este tipo de eventos com capacidade para mais de 3000 pessoas.

Mas o que se esperava era que acontecessem edições anuais como é o caso do Roça n Roll em Varginha, mas devido a falta de apoio e as muitas dificuldades enfrentadas para  a realização de uma quarta edição, que aconteceria somente seis anos mais tarde.
No ano de 2006, um CD, com músicas próprias das bandas da cena alternativa e underground da cidade, foi lançado pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura, algo começava a mudar na perspectiva de apoio a esse movimento. O reconhecimento enquanto cultura e a abertura de espaços e do direito ao apoio cultural passaram a fazer parte do cotidiano da relação de poder do estado para com os movimentos culturais da cidade. O disco se chamava Mandu sem Fronteiras como veremos nas imagens a seguir:



 Capa CD Mandu Sem Fronteiras 2006

O disco vem com um ar de rebeldia, como percebemos a capa nos remete a ideia de músicos que quebraram a cabeça de tanto pensar e não tinham onde se expressarem. As músicas selecionadas são de bandas escolhidas pelos organizadores do disco, grande parte das letras do disco são em português como observaremos:


Parte interna do encarte do CD Mandu Sem fronteiras
Caricaturas dos integrantes das bandas participantes do disco

As caricaturas representam os integrantes das bandas que participaram do CD, que foi um marco para a cena cultural na cidade, já que não tivemos conhecimento de nenhum outro projeto apoiado pela Lei municipal de Incentivo à Cultura. Com estas leis, foi possível com que o movimento obtivesse uma importante conquista, somente em 2010, foi conseguida a aprovação do evento Triumph of Metal pela Lei Estadual de Incentivo à Cultura.

Com a aprovação do evento pela lei os recursos da quarta edição do evento foi idealizada, mas faltava recolher os patrocínios, para que tudo rolasse com mais tranqüilidade, sem dificuldades e prejuízos.

A ideia do quarto Triumph se firmou quando um produtor de eventos que morava em São Paulo, mas que tinha família em Pouso Alegre e que viveu o movimento Underground na cidade, trazendo sempre shows do cenário rock para a cidade de seus pais. Bandas como Angra e Viper, foram trazidas por ele, e então Marcel Castro, marca um show do primeiro vocalista da banda Iron Maiden, Paul Di Anno, na cidade de Pouso Alegre.
Quando soube que o movimento underground havia se fortalecido, decidiu então apoiar o evento Triumph of Metal e uma parceria então foi feita para a realização da quarta edição do evento, desta vez, com uma atração Internacional.


  Cartaz da 4ª edição do Triumph of Metal, 2010

A quarta edição foi bastante aguardada, pois apenas após seis anos, outra edição seria realizada, devido a falta de apoio.  Agora a cidade ganha um presente que marcou a história do rock no sul de minas, a passagem de um ídolo de gerações anteriores, ex- vocalista de uma das maiores se não a maior banda de Heavy Metal de todos os tempos, o Iron Maiden.

Percebemos uma transformação com o decorrer do tempo, onde os incentivos começam a aumentar e o movimento a ganhar apoio da Prefeitura Municipal de Pouso Alegre e do governo do estado, o underground passa a se integrar como um evento cultural. O surgimento das leis de incentivo a cultura fazem com que o movimento se fortaleça.

Na década de 90, percebemos que o patrocínio para eventos de rock em Pouso Alegre praticamente não existia e que era comum a composição gráfica dos cartazes em apenas duas cores, pois era mais barato na época. Com o passar dos anos é possível perceber alguns apoios de empresários, amigos dos músicos e de lojas que comercializavam produtos voltados para o público jovem. Ao estudar estas práticas culturais descobrimos formas de resistências e manifestações, bem como, o apoio dado pelas Leis de Incentivo à Cultura nas esferas municipal e estadual.

Na tentativa de melhor compreender significados de movimentos sociais urbanos, buscamos, através das memórias de nossos depoentes, lembranças de experiências vividas e de práticas cotidianas que nos auxiliaram no entendimento das transformações ocorridas e dos fragmentos que permeiam o rock em Pouso Alegre. Com a realização desta pesquisa podemos verificar a existência de um movimento cultural diferenciado e pouco explorado até então. Notou-se também a sua resistência para com sua permanência. Percebemos algumas rupturas e quebra de conceitos como a aceitação do movimento como cultura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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CHARTIER, Roger. História Cultural Entre Práticas e Representações. Lisboa/Rio.

FENELON, Déa Ribeiro. O Historiador e a cultura popular: história da classe ou história do povo?  História e perspectiva, Uberlândia, jan/jun.1992

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade – 5ª ed. – Rio de Janeiro: DP& A, 2001.

________________ Da Diáspora. UFMG. Belo Horizonte. 1997.

HALL, Stuart e JEFFERSON, Tony (Orgs). “Resistance through Rituals - Youth Subcultures in Post-war Britain”, London: Ed.Hutchinson. p.21. Traduzido pelo autor: Resistência através de rituais - Juventude subculturas no pós-guerra britânico.

HOBSBAWM, Eric J. A história vista de baixo para cima. IN: Sobre história. São Paulo: Companhia  das Letras. 1998. P. 231

SARTORETO, Filipe & FONSECA, Gracielle, (Orgs) Ruído das Minas: a origem do Heavy Metal em Belo Horizonte.


[1]Graduado em História pela Universidade do Vale do Sapucaí/ Pouso Alegre - MG
2Universidade do Vale do Sapucaí/ Pouso Alegre/ MG – especialista em Historiografia.
4 Traduzido como “corrente principal”, é o pensamento corrente da maioria da população. Este termo é muito utilizado relacionado às artes em geral como música e literatura. Geralmente usado para definir algo que é comum ou usual, algo que é familiar às massas, algo que está disponível ao público geral, algo a que tem laços comerciais.
5 In HALL, Stuart e JEFFERSON, Tony (orgs.), “Resistance through Rituals - Youth Subcultures in Post-war Britain”, London: Ed.Hutchinson. p.21. Traduzido pelo autor: Resistência através de rituais - Juventude subculturas no pós-guerra britânico.
HALL Stuart, “Identidade cultural e da diáspora”. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 24, 1996, p. 68
6CHARTIER Roger. História cultural entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro: Tradução de Maria Manuela Galhardo, Bertand Brasil, 1990. p.183.
7 Ibidem. 1990.
[7] THOMPSON, E.P Costumes em Comum: Estudo sobre a Cultura popular Tradicional. SP; Cia das Letras, 2001.p.17
[8] FERREIRA, Marieta de Moraes, AMADO Janaína (orgs.), Usos e Abusos da História Oral. 5ª Ed Rio de Janeiro Editora FGV, 2002 p.4.
[9] THOMPSON, Edward. P Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia. das Letras, 1998.
[10] DOMINGUES, Andréa Silva. Oficina: Uma Experiência com História Oral. São Paulo: PUC, 2002.
[11] Fabiano Capone arquiteto, mais conhecido como Lobão um dos ícones do rock em Pouso Alegre Entrevista realizada em 17/03/2010. 
[13] Adriano Barros Gomes, entrevista realizada em: 03/08/2010.
[14] Depoimento concedido por Giancarlo Della Vitoria, entrevista realizada em 15/04/2010.
[15] Música do álbum, Cabeça de Dinossauro Composição, Tony Bellotto.
[16] Guilherme fez parte da cena musical em Pouso Alegre dos Anos 1970 e ainda está o meio até hoje.
[17] Entrevista realizada Com Guilherme dono do conhecido bar do rock em Pouso Alegre.
[18] Rodrigo Santos Azevedo, advogado  Entrevista realizada em 23/05/2010.
[19] Rodrigo Santos Azevedo, advogado. Entrevista realizada em 23/05/2010.

* Artigo apresentado no Encontro Regional Sudeste de História Oral na Universidade de São Paulo

sábado, 24 de dezembro de 2011

Os resignificados históricos da Estação Ferroviária de Pouso Alegre/MG

Ana Eugênia Nunes de Andrade
Universidade do Vale do Sapucaí
* Artigo publicado nos Anais do I Simpósio de Espaço, Sociabilidade e Ensino

Resumo: O artigo tem como objetivo debater as mudanças citadinas e os conflitos sociais em torno da antiga Estação Ferroviária da cidade de Pouso Alegre. Podemos dizer que as memórias da cidade estão representadas nos edifícios, nas ruas e avenidas, nos monumentos, nos prédios. A partir da análise das fotografias observamos o posicionamento dos políticos na utilização deste espaço público, os resignificados do prédio e as memórias dos sujeitos sociais vivenciadas e reorganizadas pela memória hegemônica.

A cidade é um espaço de sociabilidades nela estão inseridos atores que dialogam suas relações sociais e que muitas vezes se opõem as decisões do poder público. Além disso, os significados da cidade estão nos espaços públicos sendo atribuídos sentidos que se manifestam a partir das diversas memórias.

O espaço da cidade e as práticas em torno dela também trazem consigo toda uma rede de representações, de memórias que se entrelaçam construindo o saber e a visão de mundo que envolve os diferentes sujeitos. “A História precisa ser entendida com o conjunto de experiências humanas. Ao se fazer um estudo dos grupos sociais considera-se os significados das práticas coletivas de acordo com as ações dos sujeitos sociais e das convenções instituídas pelas comunidades” (CHARTIER, 2002, p.123).

Desde o início o prédio da Estação Ferroviária é visto pela população como símbolo de progresso para a cidade. A chegada do primeiro trem foi um acontecimento notável para os políticos da Capital Federal, do estado e do município. Os trilhos da Estrada de Ferro Sapucahy mudam a mentalidade dos administradores, tudo que se encontra ao redor do prédio da estação precisa ser remodelado nos moldes urbanísticos do desenvolvimento.

Foi no dia 25 de Março de 1895 que aqui chegou o trem inaugural, trazendo a seu bordo a directoria da Estrada, representantes do governo de Minas, da imprensa da Capital Federal, e grande numero de convidados pela directoria e pela comissão dos festejos com que a Camara Municipal deliberou commemorar este notável acontecimento (OLIVEIRA, 1900, p. 81).

A estação é uma construção singela, em fôrma de chalet; tem uma platafórma regular, mas pequena para conter a grande massa de povo, que quase sempre ahi se agglomera por occasião da chegada dos trens. Tem um pequeno armazém para deposito de mercadorias, dois gabinetes, communicando-se, para o agente e telegraphista, separados do armazém por um corredor que serve de sala de espera; e accomodações no restante do edifício para a família do agente (OLIVEIRA, 1900, p. 81).

Estas obras inacabadas, perto da estrada de ferro, causam má impressão e produzem verdadeiros contrastes: - aqui a locomotiva symbolisando o progresso, alli as ruínas symbolisando o atraso. (OLIVEIRA, 1900, p. 83)

Falar dos resignificados da cidade implica estabelecer conexões variadas com a própria experiência de viver em cidades. As marcas de afetividade compõem um acervo especial aos citadinos ao longo do tempo. Lembranças, sentidos, imagens, discursos se movimentam na memória coletiva. Essas marcas indicam códigos culturais que são carregados de conflitos, de ideologia, de resistências frente às práticas políticas que resignificam as imagens na cidade, reorganizando os sentidos pela memória hegemônica.

A partir dos conceitos de Thompson entendemos que cultura é uma arena conflitante, onde os sujeitos sociais trocam diferentes recursos entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole (THOMPSON, 2001. p. 17).

A autora Yara Aun Khoury contribui para uma análise sobre memória e cultura:

Considerando a história um processo de disputas entre forças sociais, envolvendo valores e sentimentos, tanto quanto interesses, dispostos a pensar e avaliar a vida cotidiana em sua dimensão histórica, a ponderar sobre os significados políticos das desigualdades sociais, nossas atenções se voltam para modos com os processos sociais criam significações e como essas interferem na própria história. Nesse sentido é que entendemos e lidamos com cultura como todo um modo de vida (FENELON, 1997, p. 18).

Pertencer à cidade implica vivenciar experiências sempre remodeladas ao longo do tempo. Estas práticas cotidianas são reconstruídas pelo pensamento e pela ação dos sujeitos sociais que criam a cada tempo outras cidades na cidade. Partimos da seguinte reflexão: qual a função social destinada nos diferentes tempos? Quais os significados atribuídos a Estação Ferroviária na cidade? Quais os elementos simbólicos desse espaço reconstruído ao longo dos anos?

A partir da análise das fotografias observarmos as transformações ocorridas na utilização do antigo prédio da Estação Ferroviária e seus arredores.  Com o estudo e a análise de imagens podemos observar a questão dos processos simbólicos.É mediante a análise dos processos simbólicos que se percebe como se criam os laços de pertencimento entre os membros de uma mesma sociedade, como e porque a memória coletiva pode unir e separar indivíduos de uma mesma sociedade ou grupo social, como e porque o imaginário social reforça certas visões de mundo mesmo quando as condições materiais para que elas existam já tenham desaparecido. Esses modos de comunicação criam campos de sabe comum; funcionam como sinais de orientação inclusive para as práticas sociais (BORGES, 2003, p. 79).

De acordo com Kossoy entendemos o papel da imagem fotográfica enquanto elemento de fixação da memória, esta fonte histórica deve ser analisada além da superfície. Ela nos mostra alguma coisa, porém seu significado a ultrapassa. Existe um conhecimento implícito nas fontes não verbais como a fotografia. “As fontes iconográficas produzidas através de diferentes formas de expressão gráfica carregam em si informações sobre certos fatos e sofre a mentalidade de uma época. Não só completam as informações transmitidas pelas fontes escritas, como, também enriquecem o conhecimento com dados reveladores” (KOSSOY, 2007, pág. 103-104).

A imagem fotográfica nos ajuda a desvendar os significados atribuídos aos espaços púbicos da cidade, revelando assim, o modo como a sociedade interpretava a dinâmica social desses sujeitos. Assim, a imagem fotográfica fixa um fato ocorrido em um momento determinado, preservando a imagem das faces, dos lugares, das coisas, das memórias, dos fatos históricos e sociais. Dessa forma, a fotografia pode ser percebida como um espelho que possui memória (BITTENCOURT, 1998, p. 205).

A chegada da ferrovia em Pouso Alegre, datada em 1895, marcou a chegada do desenvolvimento comercial e social para a cidade, a Estrada de Ferro Sapucaí, ligava as terras mineiras ao Vale do Paraíba.  Esse movimento em torno da Estação sustentou durante algumas décadas o transporte nestes veículos de tração animal e incrementou a vida na cidade.


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária

Podemos notar na fotografia acima o prédio Estação Ferroviária de Pouso Alegre de 1904, cinco anos após a Proclamação da República no Brasil, pode-se observar a relação dos habitantes da cidade com o espaço. Além da plataforma, a estação ainda abrigava uma sala para o telégrafo, bilheteria, um amplo armazém que abrigava a carga que seria despachada ou recebida, sala de espera e sanitários: masculino e feminino. Os homens que estão esperando o trem usavam como era comum àquela época terno, gravata e chapéu. Já os que estão nas ruas se vestem de uma maneira mais simples. Podemos ver também uma criança enchendo uma lata d água no chafariz, e alguns homens negociando seus produtos, era um espaço vivo da cidade.  

No cruzamento da atual Avenida Doutor Lisboa com a Avenida Vicente Simões, podemos observar que as ruas eram de terra. Em torno do prédio podemos notar que os meios de transporte eram carroças e carros puxados por animais. Homens de diferentes classes sociais moldam o cenário da cidade. A fotografia mostra os conflitos da época, de um lado a presença do desenvolvimento e do progresso simbolizados na Estação, do outro lado, traços rurais da cidade, coexistindo com os ideais republicanos da época.

...pode-se identificar o começo do que virá a ser o urbanismo moderno no encontro necessário entre o saber médico e as técnicas da engenharia, configurando as bases das práticas sanitárias que até as primeiras décadas deste século mantiveram-se como referência para as intervenções nas cidades. (BRESCIANI, 2001, p. 244).


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária – 1930

Nesta fotografia da década de 30 percebemos mudanças em torno da Estação. É nítido o aumento do fluxo de pessoas em volta do prédio (homens, mulheres e crianças). Ao fundo a direita, podemos notar a presença de carroças e animais, mas também aparecem automóveis, símbolos da modernidade, nas ruas empoeiradas da cidade. Elementos simbólicos do rural e do urbano mostram o espaço resignificado pelas práticas sociais. Os ideais de progresso da década de 30 estão pautados na ideia de modernização, tendo como pano de fundo a  industrialização que começa a aparecer no país.

Os conflitos sociais retratados nas fotografias nos dão dimensões dos espaços de discussão no contexto urbano, nos dizem como as disputas ocorrem e nos mostram as transformações que resultam delas, recuperam também, questões pertinentes às relações sociais advindas do campo e experimentadas na cidade
É também um modo de recuperar a importância da imaginação simbólica na vida social. Quando dizemos que uma imagem “fala por si mesma” e nos interpela, estamos supondo que é possível estabelecer um diálogo, tratá-la de certa forma como um”sujeito”que faz suas próprias perguntas e nos interroga, e não como objeto passivo e inanimado (ALEGRE, 1998, p. 68)


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária 1980

Já nesta imagem da década de 80, período em que a Estação Ferroviária foi desativada, podemos perceber mudanças no espaço urbano, as ruas estão calçadas de paralelepípedos, e em torno do prédio percebe-se o aparecimento de moradias residenciais. No chão, os trilhos por onde passavam os vagões e muitas histórias de vida, perdem o sentido e o lugar remete a uma cidade fantasma, que novamente é resignificada pelas políticas públicas vigentes. Os atores sociais que vivenciarem experiências em torno do cruzamento das duas artérias centrais da cidade são outros. Cabe aqui, ressaltar que neste período o Brasil era governado pelos militares que discursavam os ideais do Milagre Econômico. Muitas indústrias estrangeiras investiram capital no país, principalmente, as do setor automobilístico. Os trens deram lugar à malha rodoviária, mas o prédio e seus significados permaneceram vivos nas lembranças dos sujeitos sociais que circulavam e trabalhavam na Estação. “É preciso, portanto, não apenas recuperar os traçados dos múltiplos percursos, como também identificar as diversas maneiras de caminhar; não apenas inventariar os lugares, como analisar as maneiras de se apropriar dos lugares” (BARROS, 2007, p. 45).


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária – Década de 80

Em 1988, o prédio da Estação foi reformado e adaptado para abrigar a “Casa da Cultura Menotti Del Picchia”, tendo funcionado aqui uma galeria de artes plásticas, a Secretaria Municipal de Cultura e a Biblioteca Municipal “Prisciliana Duarte de Almeida”.  Menotti Del Picchia, um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, o príncipe dos poetas brasileiros estudou no Ginásio Diocesano São José, de Pouso Alegre. Durante os tempos de colégio na cidade escreveu seus primeiros poemas, dirigiu o jornalzinho o Mandu, e recebeu da Câmara Municipal, o título de cidadão pouso-alegrense.

A partir desta data, o espaço público é resignificado, nele é estampada a marca da cultura da cidade.  O local anteriormente marcado por lembranças do vai e vem dos vagões do trem, é simbolizado pelas práticas culturais dos artistas da cidade e região e pelos admiradores das diversas expressões artísticas que ali eram produzidas e expostas. Outros discursos são ecoados, outras imagens são projetadas, outras histórias são contadas, outros conflitos habitam o espaço.


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária - 2000

Atualmente o prédio é utilizado como o Centro de Convivência do Idoso. “O tombamento da Estação Ferroviária ocorreu em 1999 com o decreto nº 2349/99.” Percebemos aqui outra marca no prédio, em outro lugar da edificação, com outros sentidos exposto na logomarca ‘Centro Cultural de Convivência do Idoso’ que marca o antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre.  Ao analisarmos os dizeres atuais, notamos que o espaço agora não é mais o espaço da cultura, mas sim, de um determinado grupo social, limitou-se as práticas vivências neste espaço público. Por que a administração pública resignificou este espaço público? Por que a administração atual mantém esta significação? Que interesses estão em jogo?  

Cabe ressaltar, que somente ao caminhar pelas ruas de Pouso Alegre, podemos realmente notar seus resignificados, dentro de suas práticas culturais, permeados de valores, costumes e de experiências de vida na cidade.

Demonstra-se assim, as múltiplas possibilidades de fazer da história um constante exercício de construção. A proposta desta pesquisadora foi desvendar e refletir sobre as múltiplas experiências do cotidiano pousoalegrense, buscando na dinâmica da cidade os diferentes sentidos dos sujeitos sociais.

No sentido de que a cidade é um espaço marcado pelos interesses políticos, entender os significados das políticas públicas, seus processos de formação e os outros sentidos que seus idealizadores deram ao antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre. Neste artigo, muito mais que contar os resignificados do antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre procuramos problematizar as diferentes relações sociais no universo citadino, de acordo com a visão de mundo desses sujeitos, que constantemente mesclam os seus viveres com outros segmentos da sociedade, onde todos aparecem engajados na construção de uma teia que se encontra sempre em conflitos nos meandros do poder público.

Referências bibliográficas

ALEGRE, Maria Sylvia Porto. Reflexões sobre iconografia Etnográfica: por uma hermenêutica visual. In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas Ciências Sociais. Campinas, SP: Papirus, 1998.
BARROS. José D’Assunção. Cidade e História. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
BITTENCOURT, Luciana Aguiar. Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica na pesquisa Antropológica. In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas Ciências Sociais. Campinas, SP: Papirus, 1998.
BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2003, p. 79
BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora UFRS, 2002.
FENELON, Déa Ribeiro (et. al). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: EDUSP. 1997.
KOSSOY, Boris. Os Tempos da Fotografia: o efêmero e o perpétuo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.


* Artigo publicado nos Anais do I Simpósio de Espaço, Sociabilidade e Ensino na Universidade do Vale do Sapucaí.