quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Tropicalismo, “com um intuito crítico ou uma mera atração pelo estrelado mais vazio” [i]

Patrícia Vigilato

Resumo: o presente artigo buscou problematizar, por meio da análise de fotografias, História e principalmente da música, o movimento cultural denominado Tropicalismo e as contradições de um dos períodos mais conturbados da história brasileira, a década de 1960. Dessa maneira, o movimento Tropicalista foi analisado como uma prática cultural que arregimenta em torno de si, diversos posicionamentos, propiciando um acirrado debate na sociedade. Com isso, analisamos o conteúdo sobre este tema presente no livro didático “História Sociedade & Cidadania”, de Alfredo Boulos Júnior, com o intuito de propormos a música como auxilio no ensino. Compreendemos também, que os festivais de músicas brasileiras exerceram um importante papel de consolidação deste movimento, tinha além da questão do estilo, certa auto-cobrança pela classe dos artistas para que cada um ostentasse um posicionamento frente as então novas tendências da música. Havia visibilidade e também críticas ao que se era apresentado em um momento de recrudescimento do regime militar.

Palavras-chave: História e Ensino - Música – Tropicalismo

Em 31 de março de 1964 ocorreu no Brasil o golpe que resultou no afastamento do Presidente da República João Goulart. Assim, o controle foi assumido por uma junta militar que outorgaria o Ato Institucional número 1 (Al- 1), onde indicaria para presidência o Marechal Humberto de Alencar Castello Branco. O Golpe de 1964 contou com o apoio de muitas unidades militares. Durante este período, líderes sindicais foram detidos, o que dificultava ainda mais uma resistência a este golpe. O governo de Castello Branco logo é deteriorizado, e com isso perde o apoio de forças importantes.
      
Deste modo, surge no país um período considerado como “linha dura” representado pelo presidente Arthur da Costa e Silva. Surgem também, outros Atos Institucionais, o Al-2, Al-3, Al-4 e em 1968, o mais violento e o único de caráter permanente de todos os Atos Institucionais, era o Ato Institucional número 5, o Al-5. E foi em meio a este conturbado período da história política brasileira, da ascensão do governo militar e seu autoritarismo, que se desenvolveram várias manifestações artísticas no Brasil. Manifestações estas, em que seus participantes lutavam por relações contrárias ao regime. Entre estas expressões está a Tropicália, que influenciaria artistas não só da música, mais também de outras áreas como o teatro e o cinema.

Observando, o livro didático, História Sociedade & Cidadania[ii], de Alfredo Boulos Júnior, constatamos que este traz em suas páginas o conteúdo aqui apresentado. Portanto, o autor aborda o Tropicalismo de forma sucinta, onde, faz uma descrição do que foi o movimento, os principais artistas envolvidos e uma breve abordagem da canção Tropicália de autoria de Caetano Veloso.

Deste modo, propomos utilizar a música associada a essa disciplina. Acreditamos que ao utilizar a música para nos auxiliar no ensino de uma determinada disciplina, oferecemos aos alunos um caminho comunicativo e diversificado para o aprendizado. Pois, “com a música, é possível ainda despertar e desenvolver nos alunos sensibilidades para que estes façam suas próprias observações à disciplina alvo.” (FERREIRA, Martins, 2009, p. 13)

Portanto, é necessário que o professor realize bons estudos sobre a música, como, letra, contexto antes de introduzi-la na sala de aula. Visando realmente contextualizar música e conteúdo.

O movimento da Tropicália, contou com diversos artistas, entre eles, artistas politizados, que se mobilizaram e foram duramente penalizados por criticarem o regime político. E um ponto de relevância significativo deste período, foi a “Passeata dos 100 mil”, ocorrida em 26 de junho de 1968, na cidade do Rio de Janeiro, organizada pelo movimento estudantil e que contou ainda, com a participação de diversos artistas renomados da música brasileira, intelectuais e também outros setores da sociedade brasileira.

Entre os participantes desta passeata estavam alguns músicos que tempos depois se tornariam conhecidos como membros da Tropicália, eram eles Gilberto Gil e Caetano Veloso. Caetano orientou a proposta revolucionária da Tropicália sobre a influência do cinema novo. Um movimento de extrema violência estética e de uma forte carga política.

Os festivais de música brasileira também tiveram um importante papel na consolidação do Tropicalismo. Porém, estes foram interrompidos no início da década de 70, e os festivais da TV Record tiveram grande repercussão, mas, existiram muitos outros festivais, também em outras emissoras de TV, como a TV Globo entre outras. Acreditamos que os festivais, representavam um importante instrumento na participação da difusão de idéias. As canções aqui se tornavam uma espécie de “discurso”.

Os festivais eram um ponto de interseção entre o mundo estudantil e a ampla massa de telespectadores. (...) Mais, em todos os níveis tinha-se a ilusão, mais ou menos consciente, de que ali se decidiam os problemas de afirmação nacional, de justiça social, e de avanço da modernização.[iii]

Caetano faz então, um importante registro reflexivo sobre os festivais e a canção manifesto do movimento, Tropicália, em seu livro Verdade Tropical. Observamos então:

Basta que se diga por agora que essa canção sem nome justificou para mim a essência do disco, do movimento e de minha considerável dedicação a profissão que ainda me parecia provisória: era o mais perto que eu pudera chegar do que foi sugerido por Terra em Transe.[iv]
           
Analisando a fala acima de Caetano, observamos a presente influência dos filmes de Glauber Rocha em suas canções. Deste modo, acreditamos que os filmes de Glauber desencadeavam um impacto sobre o modo de pensar de Caetano Veloso, o que esta notável na citação acima.  Justificamos ainda com a seguinte consideração feita pelo artista. “Se o Tropicalismo se deu em alguma medida a meus atos e minhas idéias, temos então que considerar como deflagrador do movimento o impacto que teve sobre mim o filme Terra em Transe, de Glauber Rocha”. [v]

Ainda, sobre Tropicália, música símbolo do movimento, Favaretto afirma que, “em linguagem transparente, configura um painel histórico que resulta em metaforização do Brasil”. [vi] Ou seja, segundo o autor, a canção traça uma situação contraditória do país.

Portanto, não nos cabe identificar todos os momentos onde a complexa obra Tropicalista e a obra do Cinema Novo se identificariam esteticamente. Mas, em qual momento as ideologias convergem em diálogos de transformações culturais? O que se parece é que tanto Caetano, quanto Gil e o próprio Glauber, pareciam compreender a necessidade do uso do que podemos chamar de violência enquanto recurso artístico. Foi um momento de ousadia nos modos de expressão. Observamos então as capas dos primeiros LPs tropicalistas, Caetano Veloso (1968), Gilberto Gil (1968) e também a grande liquidação de Tom Zé (1968). 





A imagem acima retrata a capa do disco de Caetano Veloso, onde, o artista aparece com uma expressão séria, com o rosto a meia luz, em uma moldura oval e a moldura apoiada nos braços de uma mulher. E tudo isso, refletido em cores em tons fortes e marcantes. Que é uma característica do movimento.

A fotografia como fonte de pesquisa, nos leva a entender o tamanho da diversidade das fontes. É necessário que compreendam a fotografia dentro de seu contexto. O contexto da imagem fotográfica não é o seu conteúdo.

Por fim, concluímos que mesmo o disco tendo uma capa totalmente envolvida em cores, a expressão de Caetano, nos indica que este não estava em comum acordo com o que estava sendo representado, sua expressão era a de desencanto, certamente com a situação do país.




Gilberto Gil posa em uma capa onde os tons de verde, amarelo, presentes na bandeira nacional são predominantes. Também, a cor vermelha nos chama a atenção. Na imagem central, Gil veste um fardão muito parecido com o fardão da Academia Brasileira de Letras, talvez seja igual. E ao lado, ainda aparecem duas fotos suas. Em uma foto, Gil usa uma farda e na outra de óculos escuros, parece guiar um automóvel invisível. 




Já o ousado Tom Zé na capa de seu LP de 1968, aparece em preto e branco, com expressão séria e emoldurado em uma televisão. O que vemos ao lado é um cenário urbano desenhado também em cores fortes e marcantes. E dizeres representando realmente uma liquidação, que faz referência ao nome do disco.

Observamos também, que as capas de todos os LPs aqui citados trazem a foto do artista sobreposto em um fundo entre figuras compostas em um cenário amplamente expressivo. É notável ainda, as atitudes que os artistas tentavam passar através destas imagens. Estes rivalizam com um fundo amplamente colorido, em um procedimento que nos lembra um processo de colagem.

Acreditamos que o movimento da Tropicália gerou desdobramentos em diversos planos da cultura nacional. E que as canções produzidas pelos artistas do tropicalismo, eram canções de protesto e que tinham em suas letras arrojadas e engajadas a intenção de conscientizar as classes populares, o que denominam muitas vezes como a massa, o que é importante em concordância com este conteúdo, introduzirmos nos alunos o conceito de cultura, “pois, os circuitos industrializados da cultura e da comunicação de massa, em última instancia, são fundamentais na construção de identidade e valores do ser social.” [i]
  
Analisando a canção, Coragem pra Suportar, composta em 1964 por Gilberto Gil, identificamos em si uma temática popular. Esta relata a história de um morador do Sertão que organiza sua existência em torno da coragem para suportar tais condições de vida, até o momento em que o sertanejo já não tem mais essa coragem e se torna um retirante, deixando sua vida de sertanejo para trás.

Lá do sertão que tem
Coragem pra suportar
Tem que viver par ter
Coragem pra suportar
E somente plantar
Coragem pra suportar
E somente colher
Coragem pra suportar
E mesmo que não tem
Coragem pra suportar...

A canção é marcada por um regular som de violão, o doce som da flauta, o som do contrabaixo elétrico que com seu grave altera o som dos demais instrumentos, e não podemos nos esquecer do marcante som da guitarra elétrica, que neste período era considerada como novidade para os ouvidos, chegando a causar certo estranhamento. É neste período que acontece a passeata contra a guitarra elétrica, “símbolo do imperialismo”, organizada pelo programa o Fino da Bossa.

Acreditamos que, a melodia da canção, mesmo com o som da guitarra, nos leva a imaginar um ambiente típico rural.

Coragem pra suportar nos parece irônico, ao mesmo tempo em que, nos parece exaltar a garra do homem sofrido do sertão, que apesar das más condições em que vivi não lhe falta coragem. E se esta faltar, o que resta ao sertanejo é migrar para outra situação que assegure sua existência.

Ou então
Vai embora
Vai pra longe
E deixa tudo
Tudo que é nada
Nada pra viver
Nada pra dar
Coragem pra suportar.

A questão da migração neste período era uma condição bastante recente para o país.  Pois, havia se inicializado no período desenvolvimentista, onde se tornou comum a questão do deslocamento para assegurar melhores condições de sobrevivência, causando um desajuste significante ao contexto urbano. Apoiamos- nos então em Roberto Schwarz.

Afastadas de suas condições antigas, postas em situações novas e mais ou menos urbanas, a cultura tradicional não desaparecia, mas passava a fazer parte de um processo de outra natureza. A sua presença sistemática no ambiente moderno configurava um desajuste extravagante, cheio de dimensões enigmáticas, que expressava e simbolizava em certa medida o caráter pouco ortodoxo do esforço desenvolvimentista. [ii]

A música introdutória do LP de Caetano Veloso de 1968 revela- nos um sentimento de identidade. Tropicália é a canção marcante, que se inicia com batuques e sons que nos fazem lembrar a natureza. É uma trama, que representa um marco de fundação nacional.
Segundo o autor, é uma paródia feita a Carta de Pero Vaz de Caminha, pelo baterista que não sabia nada sobre a música.[iii] A música é marcada por dois ritmos em contraste, no primeiro momento é dado pelo som dos instrumentos de sopro enquanto se canta a letra. E o segundo momento, é quando se inicia o refrão e com ele o som da percussão.      

Analisando os quatro primeiros versos da música, a impressão que temos é que Caetano fala de um sujeito que parece se mover simplesmente para a direção que aponta seu nariz, ou seja, não pensa em qual direção seguir, apenas segue em frente, sem destino, no caso aqui citado, o centro do nosso país.

Sobre a cabeça os aviões
Sobre meus pés os caminhões
Aponta contra os chapadões
Meu nariz

Já na canção Alegria, alegria também é possível observarmos um sentido de deslocamento. Porém, aqui a questão do movimento caracteriza um sujeito determinado, forte e até empreendedor, pois, ao mesmo tempo em que organiza é também capaz de inaugurar. Atuante em mais de um lugar, entre eles os espaços políticos e também cultural.

Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No Planalto Central do país

Além de retratar os espaços políticos e culturais, a música retrata também questões do cotidiano e há ainda um sentimentalismo explicito nas canções, como na canção Alegria, alegria, “uma canção me consola”. E o próprio Caetano em uma reflexão sobre este movimento em seu livro Verdade Tropical, confessa não saber em que medida fazia suas canções. “Tropicalismo, com um intuito critico, ou uma mera atração pelo estrelado mais vazio!” [iv]

O sol nas bancas de revistas
Me enche de alegria e preguiça
Quem lê tanta notícia (...)

Acreditamos que, o autor teve a crítica intenção de apresentar o ponto de vista de um jovem desgarrado, mais não descompromissado com a verdade.  As revistas na canção, é a voz que dita os acontecimentos. E que segundo o próprio autor, o ponto de vista apresentado na canção foi pouco percebido pelos ouvintes, “estava no horizonte do autor.” [v] O Tropicalismo é a mistura, uma mescla de sons, composições que problematizam a abertura para o novo.

Ao tropicalismo caberia, portanto, promover a mistura ou, em palavras, salientar que a canção brasileira precisa do bolero do tango, do rock, do rap, do reggae, dos ritmos regionais, do brega, do novo, do absoleto, enfim, de todas as tendências que já cruzaram, continuam cruzando, ou ainda cruzarão o país em algum momento da sua história. Aparentemente irresponsável ou até leviano, pela falta de critério seletivo, na verdade o gesto tropicalista, pressupõe o gesto bossa nova. Aquele assimila enquanto este faz a triagem.[vi]

Enfim, as canções tropicálias uniam composições da MPB aos inovadores sons de instrumentos elétricos, principalmente as guitarras. E não só artistas como Caetano, Gil e Tom Zé representaram um marco importante no Movimento Tropicalista, mais também, o efervescente grupo brasileiro de rock, Mutantes, protagonizado por Arnaldo Baptista, Sérgio Dias e a polêmica Rita Lee, entre outros, e que fizeram ainda importantes parcerias com os artistas citados anteriormente.

Sendo assim, compreendemos que o movimento, os artistas nele envolvidos e suas canções, desempenhavam um trabalho pela construção do social. Os autores conheciam a situação política, nosso instante social e cultural do país e através deste conhecimento, propunham em suas composições uma desafiadora necessidade de se conviver com o que podemos denominar de princípio universal da diferença.

Enfim, a música é uma forma de despertar o interesse do aluno pelo conteúdo estudado. Fazendo com que, este momento seja prazeroso e informativo. Portanto, cabe ao professor questionar, despertar nos alunos um pensamento ligando a canção ao fato histórico.

Pois, não basta apenas levar a música até estes na sala de aula, é preciso trabalhar para que estes alunos compreendam a música como um meio de aprendizagem. O que não é uma tarefa fácil para o educador, “o grande desafio de todo pesquisador em música popular é mapear as camadas de sentido embutidas numa obra musical.” [i] Napolitano, nos coloca ainda que, até um passado recente, era comum a abordagem da música centralizada nas letras das canções, levando o aluno a ter conclusões parciais.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

FAVARRETO, Celso. Tropicália: alegoria e alegria. São Paulo. Ed. Ateliê Editorial, 1996.

FERREIRA, Martins. Como usar a música na sala de aula. São Paulo. Ed. Contexto, 2009

JÚNIOR, Alfredo B. História Sociedade &Cidadania, 9º ano. São Paulo: FTD, 2009

NAPOLITANO, Marcos. História e Música. Belo Horizonte, Ed. Autêntica 2002.

PINSK, Carla Bassanezi (organizadora). Novos temas na aula de História. São Paulo, Ed. Contexto, 2099.

SCHWARZ, Roberto. Sequências Brasileiras. São Paulo. Ed. Companhia das Letras.  1999.

TATIT, L. O Século da Canção. Cotia. Ed. Ateliê Editorial. 2004

VELOSO, Caetano. Verdade Tropical.  São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1997



[i] VELOSO, Caetano. Verdade Tropical.  São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1997
[ii] JÚNIOR, Alfredo B. História Sociedade &Cidadania, 9º ano. São Paulo: FTD, 2009.
[iii] Idem 1, p.177
[iv] Idem 2, p. 87.
[v] Idem 2, p. 99.
[vi] FAVARRETO, Celso. Tropicália: alegoria e alegria. São Paulo. Ed. Ateliê Editorial, 1996.


* Artigo produzido para a disciplina de Prática de Ensino em História, sob a orientação, da professora Ana Eugênia Nunes de Andrade.