sábado, 24 de dezembro de 2011

Os resignificados históricos da Estação Ferroviária de Pouso Alegre/MG

Ana Eugênia Nunes de Andrade
Universidade do Vale do Sapucaí
* Artigo publicado nos Anais do I Simpósio de Espaço, Sociabilidade e Ensino

Resumo: O artigo tem como objetivo debater as mudanças citadinas e os conflitos sociais em torno da antiga Estação Ferroviária da cidade de Pouso Alegre. Podemos dizer que as memórias da cidade estão representadas nos edifícios, nas ruas e avenidas, nos monumentos, nos prédios. A partir da análise das fotografias observamos o posicionamento dos políticos na utilização deste espaço público, os resignificados do prédio e as memórias dos sujeitos sociais vivenciadas e reorganizadas pela memória hegemônica.

A cidade é um espaço de sociabilidades nela estão inseridos atores que dialogam suas relações sociais e que muitas vezes se opõem as decisões do poder público. Além disso, os significados da cidade estão nos espaços públicos sendo atribuídos sentidos que se manifestam a partir das diversas memórias.

O espaço da cidade e as práticas em torno dela também trazem consigo toda uma rede de representações, de memórias que se entrelaçam construindo o saber e a visão de mundo que envolve os diferentes sujeitos. “A História precisa ser entendida com o conjunto de experiências humanas. Ao se fazer um estudo dos grupos sociais considera-se os significados das práticas coletivas de acordo com as ações dos sujeitos sociais e das convenções instituídas pelas comunidades” (CHARTIER, 2002, p.123).

Desde o início o prédio da Estação Ferroviária é visto pela população como símbolo de progresso para a cidade. A chegada do primeiro trem foi um acontecimento notável para os políticos da Capital Federal, do estado e do município. Os trilhos da Estrada de Ferro Sapucahy mudam a mentalidade dos administradores, tudo que se encontra ao redor do prédio da estação precisa ser remodelado nos moldes urbanísticos do desenvolvimento.

Foi no dia 25 de Março de 1895 que aqui chegou o trem inaugural, trazendo a seu bordo a directoria da Estrada, representantes do governo de Minas, da imprensa da Capital Federal, e grande numero de convidados pela directoria e pela comissão dos festejos com que a Camara Municipal deliberou commemorar este notável acontecimento (OLIVEIRA, 1900, p. 81).

A estação é uma construção singela, em fôrma de chalet; tem uma platafórma regular, mas pequena para conter a grande massa de povo, que quase sempre ahi se agglomera por occasião da chegada dos trens. Tem um pequeno armazém para deposito de mercadorias, dois gabinetes, communicando-se, para o agente e telegraphista, separados do armazém por um corredor que serve de sala de espera; e accomodações no restante do edifício para a família do agente (OLIVEIRA, 1900, p. 81).

Estas obras inacabadas, perto da estrada de ferro, causam má impressão e produzem verdadeiros contrastes: - aqui a locomotiva symbolisando o progresso, alli as ruínas symbolisando o atraso. (OLIVEIRA, 1900, p. 83)

Falar dos resignificados da cidade implica estabelecer conexões variadas com a própria experiência de viver em cidades. As marcas de afetividade compõem um acervo especial aos citadinos ao longo do tempo. Lembranças, sentidos, imagens, discursos se movimentam na memória coletiva. Essas marcas indicam códigos culturais que são carregados de conflitos, de ideologia, de resistências frente às práticas políticas que resignificam as imagens na cidade, reorganizando os sentidos pela memória hegemônica.

A partir dos conceitos de Thompson entendemos que cultura é uma arena conflitante, onde os sujeitos sociais trocam diferentes recursos entre o escrito e o oral, o dominante e o subordinado, a aldeia e a metrópole (THOMPSON, 2001. p. 17).

A autora Yara Aun Khoury contribui para uma análise sobre memória e cultura:

Considerando a história um processo de disputas entre forças sociais, envolvendo valores e sentimentos, tanto quanto interesses, dispostos a pensar e avaliar a vida cotidiana em sua dimensão histórica, a ponderar sobre os significados políticos das desigualdades sociais, nossas atenções se voltam para modos com os processos sociais criam significações e como essas interferem na própria história. Nesse sentido é que entendemos e lidamos com cultura como todo um modo de vida (FENELON, 1997, p. 18).

Pertencer à cidade implica vivenciar experiências sempre remodeladas ao longo do tempo. Estas práticas cotidianas são reconstruídas pelo pensamento e pela ação dos sujeitos sociais que criam a cada tempo outras cidades na cidade. Partimos da seguinte reflexão: qual a função social destinada nos diferentes tempos? Quais os significados atribuídos a Estação Ferroviária na cidade? Quais os elementos simbólicos desse espaço reconstruído ao longo dos anos?

A partir da análise das fotografias observarmos as transformações ocorridas na utilização do antigo prédio da Estação Ferroviária e seus arredores.  Com o estudo e a análise de imagens podemos observar a questão dos processos simbólicos.É mediante a análise dos processos simbólicos que se percebe como se criam os laços de pertencimento entre os membros de uma mesma sociedade, como e porque a memória coletiva pode unir e separar indivíduos de uma mesma sociedade ou grupo social, como e porque o imaginário social reforça certas visões de mundo mesmo quando as condições materiais para que elas existam já tenham desaparecido. Esses modos de comunicação criam campos de sabe comum; funcionam como sinais de orientação inclusive para as práticas sociais (BORGES, 2003, p. 79).

De acordo com Kossoy entendemos o papel da imagem fotográfica enquanto elemento de fixação da memória, esta fonte histórica deve ser analisada além da superfície. Ela nos mostra alguma coisa, porém seu significado a ultrapassa. Existe um conhecimento implícito nas fontes não verbais como a fotografia. “As fontes iconográficas produzidas através de diferentes formas de expressão gráfica carregam em si informações sobre certos fatos e sofre a mentalidade de uma época. Não só completam as informações transmitidas pelas fontes escritas, como, também enriquecem o conhecimento com dados reveladores” (KOSSOY, 2007, pág. 103-104).

A imagem fotográfica nos ajuda a desvendar os significados atribuídos aos espaços púbicos da cidade, revelando assim, o modo como a sociedade interpretava a dinâmica social desses sujeitos. Assim, a imagem fotográfica fixa um fato ocorrido em um momento determinado, preservando a imagem das faces, dos lugares, das coisas, das memórias, dos fatos históricos e sociais. Dessa forma, a fotografia pode ser percebida como um espelho que possui memória (BITTENCOURT, 1998, p. 205).

A chegada da ferrovia em Pouso Alegre, datada em 1895, marcou a chegada do desenvolvimento comercial e social para a cidade, a Estrada de Ferro Sapucaí, ligava as terras mineiras ao Vale do Paraíba.  Esse movimento em torno da Estação sustentou durante algumas décadas o transporte nestes veículos de tração animal e incrementou a vida na cidade.


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária

Podemos notar na fotografia acima o prédio Estação Ferroviária de Pouso Alegre de 1904, cinco anos após a Proclamação da República no Brasil, pode-se observar a relação dos habitantes da cidade com o espaço. Além da plataforma, a estação ainda abrigava uma sala para o telégrafo, bilheteria, um amplo armazém que abrigava a carga que seria despachada ou recebida, sala de espera e sanitários: masculino e feminino. Os homens que estão esperando o trem usavam como era comum àquela época terno, gravata e chapéu. Já os que estão nas ruas se vestem de uma maneira mais simples. Podemos ver também uma criança enchendo uma lata d água no chafariz, e alguns homens negociando seus produtos, era um espaço vivo da cidade.  

No cruzamento da atual Avenida Doutor Lisboa com a Avenida Vicente Simões, podemos observar que as ruas eram de terra. Em torno do prédio podemos notar que os meios de transporte eram carroças e carros puxados por animais. Homens de diferentes classes sociais moldam o cenário da cidade. A fotografia mostra os conflitos da época, de um lado a presença do desenvolvimento e do progresso simbolizados na Estação, do outro lado, traços rurais da cidade, coexistindo com os ideais republicanos da época.

...pode-se identificar o começo do que virá a ser o urbanismo moderno no encontro necessário entre o saber médico e as técnicas da engenharia, configurando as bases das práticas sanitárias que até as primeiras décadas deste século mantiveram-se como referência para as intervenções nas cidades. (BRESCIANI, 2001, p. 244).


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária – 1930

Nesta fotografia da década de 30 percebemos mudanças em torno da Estação. É nítido o aumento do fluxo de pessoas em volta do prédio (homens, mulheres e crianças). Ao fundo a direita, podemos notar a presença de carroças e animais, mas também aparecem automóveis, símbolos da modernidade, nas ruas empoeiradas da cidade. Elementos simbólicos do rural e do urbano mostram o espaço resignificado pelas práticas sociais. Os ideais de progresso da década de 30 estão pautados na ideia de modernização, tendo como pano de fundo a  industrialização que começa a aparecer no país.

Os conflitos sociais retratados nas fotografias nos dão dimensões dos espaços de discussão no contexto urbano, nos dizem como as disputas ocorrem e nos mostram as transformações que resultam delas, recuperam também, questões pertinentes às relações sociais advindas do campo e experimentadas na cidade
É também um modo de recuperar a importância da imaginação simbólica na vida social. Quando dizemos que uma imagem “fala por si mesma” e nos interpela, estamos supondo que é possível estabelecer um diálogo, tratá-la de certa forma como um”sujeito”que faz suas próprias perguntas e nos interroga, e não como objeto passivo e inanimado (ALEGRE, 1998, p. 68)


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária 1980

Já nesta imagem da década de 80, período em que a Estação Ferroviária foi desativada, podemos perceber mudanças no espaço urbano, as ruas estão calçadas de paralelepípedos, e em torno do prédio percebe-se o aparecimento de moradias residenciais. No chão, os trilhos por onde passavam os vagões e muitas histórias de vida, perdem o sentido e o lugar remete a uma cidade fantasma, que novamente é resignificada pelas políticas públicas vigentes. Os atores sociais que vivenciarem experiências em torno do cruzamento das duas artérias centrais da cidade são outros. Cabe aqui, ressaltar que neste período o Brasil era governado pelos militares que discursavam os ideais do Milagre Econômico. Muitas indústrias estrangeiras investiram capital no país, principalmente, as do setor automobilístico. Os trens deram lugar à malha rodoviária, mas o prédio e seus significados permaneceram vivos nas lembranças dos sujeitos sociais que circulavam e trabalhavam na Estação. “É preciso, portanto, não apenas recuperar os traçados dos múltiplos percursos, como também identificar as diversas maneiras de caminhar; não apenas inventariar os lugares, como analisar as maneiras de se apropriar dos lugares” (BARROS, 2007, p. 45).


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária – Década de 80

Em 1988, o prédio da Estação foi reformado e adaptado para abrigar a “Casa da Cultura Menotti Del Picchia”, tendo funcionado aqui uma galeria de artes plásticas, a Secretaria Municipal de Cultura e a Biblioteca Municipal “Prisciliana Duarte de Almeida”.  Menotti Del Picchia, um dos líderes da Semana de Arte Moderna de 1922, o príncipe dos poetas brasileiros estudou no Ginásio Diocesano São José, de Pouso Alegre. Durante os tempos de colégio na cidade escreveu seus primeiros poemas, dirigiu o jornalzinho o Mandu, e recebeu da Câmara Municipal, o título de cidadão pouso-alegrense.

A partir desta data, o espaço público é resignificado, nele é estampada a marca da cultura da cidade.  O local anteriormente marcado por lembranças do vai e vem dos vagões do trem, é simbolizado pelas práticas culturais dos artistas da cidade e região e pelos admiradores das diversas expressões artísticas que ali eram produzidas e expostas. Outros discursos são ecoados, outras imagens são projetadas, outras histórias são contadas, outros conflitos habitam o espaço.


Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo – Estação Ferroviária - 2000

Atualmente o prédio é utilizado como o Centro de Convivência do Idoso. “O tombamento da Estação Ferroviária ocorreu em 1999 com o decreto nº 2349/99.” Percebemos aqui outra marca no prédio, em outro lugar da edificação, com outros sentidos exposto na logomarca ‘Centro Cultural de Convivência do Idoso’ que marca o antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre.  Ao analisarmos os dizeres atuais, notamos que o espaço agora não é mais o espaço da cultura, mas sim, de um determinado grupo social, limitou-se as práticas vivências neste espaço público. Por que a administração pública resignificou este espaço público? Por que a administração atual mantém esta significação? Que interesses estão em jogo?  

Cabe ressaltar, que somente ao caminhar pelas ruas de Pouso Alegre, podemos realmente notar seus resignificados, dentro de suas práticas culturais, permeados de valores, costumes e de experiências de vida na cidade.

Demonstra-se assim, as múltiplas possibilidades de fazer da história um constante exercício de construção. A proposta desta pesquisadora foi desvendar e refletir sobre as múltiplas experiências do cotidiano pousoalegrense, buscando na dinâmica da cidade os diferentes sentidos dos sujeitos sociais.

No sentido de que a cidade é um espaço marcado pelos interesses políticos, entender os significados das políticas públicas, seus processos de formação e os outros sentidos que seus idealizadores deram ao antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre. Neste artigo, muito mais que contar os resignificados do antigo prédio da Estação Ferroviária de Pouso Alegre procuramos problematizar as diferentes relações sociais no universo citadino, de acordo com a visão de mundo desses sujeitos, que constantemente mesclam os seus viveres com outros segmentos da sociedade, onde todos aparecem engajados na construção de uma teia que se encontra sempre em conflitos nos meandros do poder público.

Referências bibliográficas

ALEGRE, Maria Sylvia Porto. Reflexões sobre iconografia Etnográfica: por uma hermenêutica visual. In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas Ciências Sociais. Campinas, SP: Papirus, 1998.
BARROS. José D’Assunção. Cidade e História. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.
BITTENCOURT, Luciana Aguiar. Algumas considerações sobre o uso da imagem fotográfica na pesquisa Antropológica. In: Desafios da imagem: fotografia, iconografia e vídeo nas Ciências Sociais. Campinas, SP: Papirus, 1998.
BORGES, Maria Eliza Linhares. História e Fotografia. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2003, p. 79
BLOCH, Marc. Apologia da História: ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietudes. Porto Alegre: Editora UFRS, 2002.
FENELON, Déa Ribeiro (et. al). Muitas memórias, outras histórias. São Paulo: EDUSP. 1997.
KOSSOY, Boris. Os Tempos da Fotografia: o efêmero e o perpétuo. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudo sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.


* Artigo publicado nos Anais do I Simpósio de Espaço, Sociabilidade e Ensino na Universidade do Vale do Sapucaí.