sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Usos dos carros de bois no comércio de Pouso Alegre na década de 30


Juliano de Melo Gregório e Ana Eugênia Nunes de Andrade
* Artigo publicado nos Anais do I Simpósio de Espaço, Sociabilidade e Ensino
Universidade do Vale do Sapucaí

RESUMO: O presente artigo tem o objetivo de compreender os usos dos carros de bois no comércio de Pouso Alegre durante a década de 30. Neste sentido, pretendemos focar os conflitos sociais e econômicos dos trabalhadores rurais no município, a partir da política desenvolvimentista que começou a ser implantado nesse período. Para tanto, são analisados fotografias da cidade, publicações de jornais locais e depoimentos orais enquanto fonte de pesquisa. Após o estudo observamos que os carreiros[1] resistiram às idéias progressistas impostas pelos administradores. Esta pesquisa tem intuído de contribuir para construção crítica da História Social pouso-alegrense.

Na década de 1930 a administração do Prefeito Dr. Vasconcelos Costa realizou, na cidade sul mineira de Pouso Alegre, inúmeras obras públicas que fomentavam a inserção do município à ordem desenvolvimentista nacional. A título de exemplo: a venda e demolição da antiga cadeia, localizada na extinta Praça Francisco da Veiga, em virtude do prolongamento da avenida Dr. Lisboa que é ponto referencial até os dias atuais. O apelo ao moderno ratificava a construção de monumentos arquitetônicos aos moldes franceses, a exemplo das obras de embelezamento da capital nacional realizada por Pereira Passos no século XIX. Ao mesmo tempo, os laços campesinos também eram muito evidentes no cotidiano pouso-alegrense, e por que não pensá-los em nível da conjuntura política e social da nação?

Imagem 01 – Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo - 1948

Esta imagem retrata o cotidiano da avenida Dr. Lisboa, ponto central da cidade. Observamos que o estilo arquitetônico nos remete ao ideário urbano francês anteriormente mencionado: uma avenida larga, pavimentada e arborizada. A ausência de fios nos postes de iluminação e o modelo arquitetônico das casas, à margem da avenida, são também características preponderantes do mesmo ideal urbano. Ao fundo da imagem identificamos a circulação de automóveis pela avenida. No canto inferior direito da fotografia, identifica-se um cavaleiro.  

Ao passo que, segundo dado do IBGE[2], a população brasileira era em maioria rural. Sendo 30% habitantes, entre homens e mulheres, urbanos contra 69% habitantes rurais. Nesse sentido, analisaremos a dualidade entre a cidade e o campo na década 30 em Pouso Alegre, a partir dos usos de carros de bois, enquanto prática social no município, uma vez que estes eram utilizados tanto na produção agrícola realizada no campo quanto no comércio realizado na cidade.

“O campo e a cidade são realidades históricas em transformação tanto em si próprias quanto em suas inter-relações. Temos uma experiência não apenas do campo e da cidade, em suas formas mais singulares, como também de muitos tipos de organizações sociais e físicas intermediárias e novas” (WILLIAMS, 2011, p. 463). Considerando as palavras do historiador, campo e a cidade estão em constantes processos de (re) significação. Dessa forma, seus contrastes não é mera dicotomia que opõem respectivamente da barbárie ao lócus. Sobretudo, novas abordagens são possibilitadas nesse sentido. Sendo assim, nosso trabalho contribui para construção crítica da historiografia pouso-alegrense.  

Durante a década de 1930, Pouso Alegre ainda não recebera investimentos para o desenvolvimento industrial de sua economia. Lembrando que a industrialização no país nesse período era restrita basicamente a cidade de São Paulo capital e Rio de Janeiro. O comércio era utilizado como discurso legitimador dos ideais urbanísticos, que caracterizava os meios de produção e trabalho no espaço urbano pouso-alegrense. O jornal “O Linguarudo” ecoava a voz do progresso

Para o viajante, que chega de outras terras, Pouso Alegre é uma surpresa e um milagre, por que ninguem supõe que um município como este, que não tem tido auxilio de grandes empresas particulares ou oficiosas, posso apresentar aspectos tão encantadores, o movimento comercial tão desusado, a produção agricula tão variada em grande escala como Pouso Alegre apresenta, em comparação com outras cidades brasileiras. [...] As terras muito divididas e cultivadas, produzindo varios produtos diferentes, não deixa haver as crises motivadas nos logares onde se pratica a monocultura[3].
“O Linguarudo” era um jornal que abordava, com crítica e humor, os acontecimentos sociais e políticos da cidade. Ele “foi um dos jornais mais lidos e admirados da cidade, graças à singularidade, à persistência e ao carisma do editor” (QUEIROZ, 1998, p. 101), sobretudo seu redator – Pedro Lúcio de Andrade – era um comerciante local. Observa-se na publicação, como anteriormente dito, que na década de 30 não havia indústrias em Pouso Alegre e o comércio ratificava o processo de desenvolvimento urbano. Adjunto, nota-se também que a atividade agrícola era preponderante à economia do município.

As principais casas comerciais localizavam-se no centro da cidade. Ou ainda, no próprio Mercado Municipal.

Imagem 02 – Foto cedida pelo Museu Histórico Municipal Tuany Toledo

Na fotografia acima, observamos um fluxo intenso de pessoas ao fundo do Mercado Municipal. Registrada na década de 1920, mulheres, crianças e homens adultos são identificados num dia de funcionamento normal do comércio. Podemos observar crianças sentadas sobre carrinhos de madeira, estes pequenos veículos eram utilizados pelas mesmas para executarem o serviço de entrega de compras aos clientes do mercado. Nota-se aqui uma forma de trabalho de crianças na cidade. O transporte de mercadorias também era realizado por tração animal. No canto inferior direito da fotografia apresenta-se um animal eqüino devidamente preparado para a condução de carga.

Nesse sentido, os carros de bois estavam envolvidos de modo ambivalente na constituição do espaço urbano pouso-alegrense. Em primeiro lugar, fazia-se presente junto ao cultivo e produção agrícolas, como por exemplo: os territórios designados a agricultura no campo eram por eles arados, pois praticamente não havia tratores para a execução dessa atividade. Em segundo lugar, os carros de bois eram utilizados para transportar mercadorias do campo para a cidade.

Com efeito, a principal função dos carros de bois na cidade era transportar lenha aos citadinos, pois existiam fogões a gás nesse período. Sobre o transporte de lenha por carros de boi o ex-carreiro Rubem Dias Monteiro[4] nos diz:

Eu fornecia lenha pr’um tal de João Mariano, que vendia nas carrocinha pra rua. Despeja lenha pr’ele, ele pegava a corrocinha dele, punha os pauzinho e ia entrega... Nas casa. Não existia gás, né? Era só na lenha, então nóis ia vendê [...] Eu vendia lenha pra cidade inteira. No quartel, o que eu forneci lenha no quartel não foi brincadeira! Então tocava a vida desse jeito [...][5]

Em sua fala observamos que os carros de bois carregados de lenha tinham seus clientes específicos, ou seja, ao deixar o campo, já havia um comprador destinatário a espera do produto na cidade. Na maioria dos casos eram os próprios donos de armazéns que compravam a carga para revenda. Identificamos ainda presença militares na cidade de Pouso Alegre. Por sua vez, eles já faziam parte oficialmente do cenário citadino desde 1918 com a criação do 10º Regimento de Artilharia Montada (10º RAM). Vale lembrar que nesse período era vigente no Brasil o regime político do Estado Novo e os militares eram muito influentes no governo.

Sobre o uso da oralidade na construção historiográfica, PORTELLI (2010, p. 33) enfatiza: “Contar uma estória é tomar as armas contra a ameaça do tempo, resistir ao tempo ou controlara o tempo. O contar uma estória preserva o narrador do esquecimento; a estória constrói a identidade do narrador e o legado que ela ou ele deixa para o futuro”. Dessa forma, defendemos que a história oral revela as práticas sociais dos carreiros ocultadas pelos discursos institucionais desenvolvimentistas que construíram a história oficial do município. Do mesmo modo, ela contribui para formular a identidade social e o legado cultural desses trabalhadores.


Para que pudessem circular pela cidade ou mesmo no campo, os carros de bois passavam por um processo de cadastramento junto à Prefeitura Municipal. Após o cadastro, era fixada nos carros uma placa metálica com o número de registro, semelhante ao modelo abaixo:

Imagem 08: GREGÓRIO, Juliano de Melo. [Sem título]. 2011

O cadastro dos carros de bois implicava na tributação anual de impostos para circulação e está intimamente ligado às criações das estradas municipais. Outro aspecto a ser considerado refere-se ao interesse por parte do poder público em conservar o bom estado das estradas de rodagem, visto que os carros de bois danificavam-nas devido ao peso e a curta espessura das rodas. As placas eram circunscritas em uma chapa ou calçadas por hastes de ferro chamadas pião.  

Além dos produtos agrícolas, o comércio da cidade de Pouso Alegre também era fomentado por mercadorias e serviços industrializados ou manufaturados, tais como: guarda-chuvas, chapéus, tecidos e roupas.

Imagem 02 – O MUNICÍPIO. [Sem título]. Pouso Alegre. MG, 7 mai. 1938, p. 3

O anúncio acima foi publicado no jornal “O município”, que era um órgão oficial da Prefeitura Municipal, criado em 1938, por Tuany Toledo. A propaganda citada divulga um ponto comercial que trabalha com inúmeros tipos de produtos, entre eles: guarda-chuvas, chapéus, tênis e outros. Tais mercadorias não eram produzidas em Pouso Alegre, mas vinham de fora para atender ao público consumidor. O Largo do Mercado, localização da Casa Cometa, era um ponto central da cidade.

Imagem 03 – A CULTURA. [Sem título]. Pouso Alegre. MG, 22 jun. 1938, p. 4.

“Boccato e Martins” era o nome de uma alfaiataria pouso-alegrense que tinha como endereço comercial outro ponto central da cidade: a praça Senador José Bento. Nota-se que ela era especializada na confecção de uniformes. A partir desse anúncio publicitário identificamos a presença militares na cidade de Pouso Alegre.


Apesar dos ideais políticos desenvolvimentistas em apelo a urbanização, os carros de bois mantiveram-se enquanto prática social da cidade de Pouso Alegre até o início da década de 70. O transporte de tração animal era o meio mais utilizado para o abastecimento dos produtos agrícolas e de lenhas para uso doméstico e comercial. Ao passo que no setor campesino do município os trabalhadores rurais resistiram até primeira metade da década de 80.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
PORTELLI, Alessandro. Ensaios de história oral. São Paulo: Letra e Voz, 2010
QUEIROZ, Amadeu de. A história de Pouso Alegre e sua imprensa. Pouso Alegre: Ferrer Comunicações, 1998
WILLIAMS, Raymond. Campo e cidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2011

[1]Carreiros: pessoa que conduzem carros de bois.
[2] Instituto Brasileiro Geografia Estatística (IBGE).
[3] ANDRADE, Pedro L. Sua beleza, seu progresso, sua administração. O Linguarudo, Pouso Alegre. MG, 8 out. 1939, p. 1.
[4] Rubem Dias Monteiro foi carreiro durante cerca de 20 anos, entre as décadas de 1930 à década de 1950, morador do bairro dos Afonsos desde sua infância, atualmente ele é aposentado e reside em uma propriedade rural no mesmo bairro.
[5] MOTEIRO, Rubem Dia. Depoimento concedido a Juliano de Melo Gregório. Pouso Alegre, 2011.


* Artigo publicado nos Anais do I Simpósio de Espaço, Sociabilidade e Ensino na Universidade do Vale do Sapucaí.