quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Debret e as imagens nos livros didáticos de História

Cleyton Antonio da Costa

O ensino brasileiro, como já é muito dito, perpassa por mudanças. Mais estas mudanças tão divulgadas pela mídia, ocorrem efetivamente? Umas das metas educacionais que é de formar cidadãos críticos e conscientes é alcançada? Neste âmbito reflexivo entra em questão o ensino de História que “possui objetivos específicos, sendo um dos mais relevantes, o que se relaciona à constituição da noção de identidade. Assim, é primordial que o ensino de História estabeleça relações entre identidades individuais, sociais e coletivas, entre as quais as que se constituem como nacionais”.[1]

E com este aporte, discutimos como o ensino de História promove esta identidade partindo do livro didático, observando as imagens referentes ao negro africano selecionados pelo livro didático do Projeto Araribá da 7ª serie (atual 8º ano) da Editora Moderna. É sabido que há uma escolha para a utilização destas imagens. Nesta perspectiva, de fomentar um novo olhar “preso” ao livro didático, mas que possibilite uma maior abrangência do assunto propomos analisar outros registros iconográficos de Debret, que retratam o cotidiano do negro na cidade do Rio de Janeiro em meados do século XIX.

Umas das ferramentas do ensino brasileiro é o livro didático, porém são “os mais usados instrumentos de trabalho integrantes da ‘tradição escolar’ de professores e alunos, fazem parte do cotidiano escolar há pelo menos dois séculos. Trata-se de objeto cultural de difícil definição, mas, pela familiaridade de uso, é possível identificá-lo, diferenciando-o de outros livros.” [2] Muitas vezes constituindo como um “guia permanente” para as aulas de História.  Ou melhor, um dos únicos instrumentos utilizados pelo professor dentro da sala de aula, além do giz, quadro negro e a voz. Um manual que é compartilhado pelo professor e pelo aluno. Produzido de acordo com os currículos educacionais e portador de valores, de ideologias.[3]

O livro didático fomenta múltiplas discussões. E uma dessas perpassa a nós, futuros docentes, ter a consciência que o livro didático, não é o único meio para se desenvolver uma aula. Sendo uma ferramenta, que necessita ser diariamente questionado, notando o porquê de tal escrita, o que quer corroborar ou marginalizar, qual é seu discurso?

Analisando o livro do Projeto Araribá, focando no conteúdo “O fim do Primeiro Reinado”, vemos a representação do trabalho escravo no especo urbano do Rio de Janeiro do pintor, desenhista Jean-Baptiste Debret. Pintor francês que viveu quinze anos no Brasil  e produziu a obra Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. [4] As imagens localizadas nas páginas 150 a 156. São quatro imagens que mostram tal temática, porém elas não dialogam com o conteúdo apresentado. É perceptível o uso da imagem sem o dialogo que possibilite uma conexão co o texto. Dando a impressão de tal imagem, apenas como ilustração, como é o caso da gravura “Negros Calcateiros” na página 151.

Em outro tópico denominado “Rio de Janeiro, a cidade da corte” no desenvolver deste texto no subtítulo “Uma cidade de escravos” aponta que “metade da população da cidade do rio de Janeiro da época joanina era constituída de escravos”.[5] Utiliza a imagens Refresco do Largo do Palácio e da Colar de ferro, castigo dos negros fugitivos, apoiando nelas para a leitura do texto e a realização de atividades partindo das imagens.



A busca de manter a identidade no negro atrelada ao trabalho forçado é viva neste espaço ao olhar a cidade da Corte. Como adverte Paiva

a iconografia é, certamente, uma fonte histórica das  mais ricas, que traz embutidos as escolhas do produtor e todo o contexto no qual foi concebida, idealizada, forjada ou inventada. Nesse aspecto, ela é uma forte como qualquer outra e, assim com as demais, tem que ser explorada com muito cuidado.[1]

E com este conselho atenta ao olhar e trabalhar com a(s) imagem(s) vimos que tal propõe uma representação, não é a realidade em si, mais conduz uma perspectiva a fato que ocorreram e marcaram devido a sua significação.

Diante desta conjectura, este artigo tem por escopo propor uma ampliação ao trabalhar as obras de Debret, que retratam o escravo africano no ambiente urbano do rio de Janeiro, meados do século XIX. Desta forma, é objetivado aqui ir além do livro didático Projeto Araribá. O que se busca é problematizar tal discurso é não apenas repetido sem nenhuma alteração ou aquisição de um novo olhar das imagens debretianas.

E neste olhar de problematizar, recorremos à historiadora Déa Fenelon que apresenta a prática da investigação, sendo que:

através dela se poderia aprender, sobretudo, a problematizar e a questionar não apenas a historiografia no sentido da produção intelectual, mas também a própria realidade concreta que nos rodeia, numa prática mais sadia de ensinar a praticar a própria disciplina, olhando em volta, tentando mostrar uma História viva, que permita aos alunos sua própria identificação social.[2]

Aqui fica evidente a missão do docente, ou seja, o ato de pesquisa deve fazer mais do que presente no ensino de História, e sim ser um alicerce que promova a busca de outras versões do conhecimento histórico. Possibilitando fomentar a “História viva”, em que o aluno se identifique e que não apenas repita ou decore o conteúdo em si “pregado” pelo livro didático.

Com a proposta de gerar no aluno um olhar diferenciado da História, fazendo o perceber que ele não é apenas um expectador passivo, ao folhear as páginas de seu livro ou ao responder as atividades propostas pelo professor. Mas que ele é um sujeito social que constrói a história no seu quotidiano, nas escolhas e ações que realiza. Resumindo, que ele faz história.

E com este viés, analisando o livro didático supracitado deve ater se as imagens que apresentam, percebendo o que o autor quer manter ou divulgar. Quais as idéias implícitas no uso de tais imagens? Que memória que transmitir? O que quer evidenciar ou silenciar?
Para esta discussão Le Goff aponta:

A memória coletiva foi posta em jogo de forma importante na luta das forças sociais pelo poder. Tornarem-se senhores da memória e do esquecimento é uma das grandes preocupações das classes, dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades históricas. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.[3]

Desta forma, vemos que o uso de imagens de Debret, em que o escravo é expresso de forma servil, submissa, subjugado. Quer mostrar que  o pobre não pode manifestar sua vontade? Que o negro, atualmente, está a margem da sociedade. Faço estes questionamentos, pois o professor deve tratar com a perspectiva presente-passado-presente. A partir do contexto, que é a sala da aula, onde há alunos de diferentes níveis sociais, o professor precisar expor que tais práticas fazem parte de um período no Brasil, que ó negro era visto como mercadoria e mão-de-obra.

E o professor diante desta problematização precisa levar aos alunos que não é só esta memória que há dos escravos negros.  O aluno ao ter sempre uma visão reduzida sobre a escravidão por meio do conteúdo que apresentada os negros africanos somente como mão de obra e sendo açoitados. Construirá uma perspectiva deturpada do conhecimento histórico. Expor que os negros contribuíram na nossa cultura, que seus traços permanecem vivos no nosso meio.

Desta forma, uma das maneiras do docente trabalhar com outras visões acerca do escravo por meio de Debret é trazendo a tona, outras imagens que não aparecem no livro didático do Projeto Araribá da 7ª série. Mas porque trabalhar outras imagens que não estão no livro?

É uma forma de romper com esta dominação exercida pelos “senhores da memória”, que são os governantes, a elite que financia a realização dos livros didáticos. É propor ao aluno que o conteúdo que está no livro fora escrito de uma forma, mais que poder ser, também, registrado com outra versão ou versões.

E com este objetivo de propor outros olhares as obras de Debret que retratam os(as) negros(as) no espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro.



A imagem acima expõe três negras que são vendedora de frutas e animais (como as galinhas) pelas ruas da capital da corte.  A negra em primeira plano, sentada com uma postura tranqüila apresenta um momento de descanso, mediante a tarefa de vendas pelas vielas e ruas da cidade. e no segundo plano, representa um dialogo entre duas mulheres. Aqui é evidenciado um ambiente permeado pelo trabalho.

Nos núcleos urbanos, maiores ou menores, durante o período escravista e todas as regiões brasileiras, escravos e, principalmente, escravas estiveram envolvidas com atividades comerciais. As ruas viviam cheias de ‘negras de tabuleiro’ (muitas delas trabalhando como negras de ganho), que vendiam quitandas de todos os tipos e, também, refrescos.[1]

E com esta mobilidade no espaço urbano, vê-se a resistência cultural perpassado pelas indumentárias e acessórios. Pulseiras e objetos amarrados a cinturas, juntamente com as marcas nos rostos expressam elementos que remetem as práticas culturas das regiões oriundas do continente africano, ou mesmo, peças que foram adaptadas que possuem vínculo com suas tradições. O que será que pensa a mulher sentada? Cansada de sofrer? Saudosismo da terra-mãe ou dos seus que não estão próximos? O que a imagem debretiana diz? Será que ela teria esta postura relaxada se estive sob o olhar do seu senhor? Ingadações que o docente pode trabalhar ao levar esta representação para a sala de aula.



O ambiente acima mostra uma espécie de açougue, em homens negros lidam com a carne. Constitui-se em uma atividade comercial. Que relação se estabelece neste cenário? Será que o homem, que “destrincha” provável um porco e que veste uma túnica será o dono do estabelecimento? Sua roupa recorda certa influência muçulmana. A imagem divide-se em duas cenas, devido a divisão realizada pela existência de três tabuas fixadas, verticalmente, na entrada. A outra cena centraliza no negro, que manuseia a faca com o auxilio da boca ao cortar a peça de carne. Sendo uma postura atenta a sua ação, que visa atender aos clientes que aguardam.



Momentos de lazer também foram retratados por Debret. Na imagem acima vemos um momento que manifesta a ruptura do cotidiano de trabalho árdua no espaço urbano.  As indumentárias coloridas expõem um cenário marcado pela alegria e descontração. Fora dos olhares severos dos senhores, os negros “brincam” ao jogarem água uns nos outros. Constituindo um espaço repletos de significados. Os rostos sujos de uma massa branca marcam a inserção na brincadeira, em que a negra de vestido laranja, supõe ser uma vendedora, que exercia suas atividades e se deparar com este contexto lúdico produzido como forma de produzir uma sociabilidade entre os seus, em que o lazer se faz presente.

Debret ao retratar tal o cotidiano urbano, mostra que os negros não fixavam apenas na lavoura, porém, em espaços diferenciados, como em um estabelecimento feito para a venda de carnes. 




 A imagem “Negros e mulatos coletando esmolas para a Irmandades”  propõe a organizações que estes sujeitos sociais realizam na sociedade em meados do século XIX. A historiadora Marina de Mello e Souza em seus estudos afirma que:


as irmandades de ‘homens negros’, espaços que permitiam um maior controle sobre os africanos escravizados e seus descendentes, cativos ou livres, ao mesmo tempo em que possibilitavam o desenvolvimento de relações específicas a  estes grupos, que nelas encontravam formas de afirmação social e cultural.[1]


E com este aporte, a imagem se torna mais provocativa, pois com este dialogo vemos que ao sair às ruas para angariar esmolas paras as irmandades, nota-se um espaço marcado pela dualidade. Cujo espaço que é as irmandades, como afirma Souza, são propícios para o controle mais acirrado por parte da Igreja Católica, que debruçava neste “cuidado” visando a vivencia e o pertencimento os princípios cristãos. Mas que também, favoreciam a resistência de práticas culturais negras.

Constituindo, desta maneira, um âmbito, repleto de significados para estes que iam as ruas pedirem esmolas. Diante disso, formulando uma maneira a mais de ir até as ruas, sendo que naqueles espaços, promovidos pelas irmandades, certa praticas tinham seus usos mantidos e conservados, ou até resignificados devido ao olhar atento da Madre Igreja.

Jean-Baptiste Debret deixou muitos registros do cotidiano da vida nesta cidade onde os negros assumiram o papel de principais personagens, surpreendidos muitas vezes no contrafluxo da expectativa presente na ordem escravocrata, onde o negro é mercadoria e força de trabalho por excelência. Debret registrou o duro trabalho dos escravos, nas suas múltiplas variantes, e também os castigos e suplícios aplicados, mas paralelamente a estas cenas, captou muito mais das sensibilidades em jogo do Brasil tropical. Outras se exibem, a registrar momentos de lazer, hábitos da época e da vida nas ruas, tipos físicos, cenas de sedução, formas de trajar, práticas religiosas e festivas.[2]

Assim, é perceptível, este olhar sensível adotado pro Debret ao retratar o cotidiano dos negros no espaço urbano do Rio de Janeiro. Sendo um estrangeiro, se desarmou da perspectiva vigente, que o escravo é tido como uma força de trabalho. Indo além deste estereótipo, possibilitando um contexto negado e ocultado a esses sujeitos sociais que contribuíram na formação, tanto econômica quanto sócio-cultural brasileira.

Neste artigo visou propor um panorama que fosse além do conteúdo apresentado pelo livro didático do Projeto Araribá da 7ª serie (atual 8º ano). Ao trazer outras imagens fomentou se a formulação de uma contribuição ao docente que exerce sua atividade docente na sala de aula portando o livro didático. Visto que já fora mencionado, que esta ferramenta deve ser sempre analisada e discutida. Assim, o professor poderá construir sua prática percorrendo um caminho além do que é traçado pelo livro didático.

Pois, poderá com esta postura de pesquisa e busca de conhecimento ter um olhar sensível para o ensino brasileiro, que busca formar alunos críticos e reflexivos, que vão além do obvio. Assim, como foi Debret ao retratar o cotidiano dos homens e mulheres escravos da cidade do Rio de Janeiro nos meados do século XIX.
           
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008.

BRASIL. Ministério da educação. Secretária de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: História e Geografia. Brasília, DF: MEC/SEF, 2000.

FENELON, Dea Ribeiro. A formação do profissional de História e a realidade do ensino. In: Revista Tempos Históricos, vol. 12, 2008.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4 Ed., Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1996.

LIBBY,Douglas Cole; PAIVA, Eduardo França. A Escravidão no Brasil: relações sociais, acordos e conflitos. São Paulo: Moderna, 2000.

LIMA, Valeria. Uma viagem com Debret. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004.

PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006.

PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar do “outro”: Jean-Baptiste Debret e o Rio de Janeiro (1816 – 1831). Disponível em http://nuevomundo.revues.org/3669. Acesso em 11 de outubro de 2011.

SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: História da festa de coroação de rei congo. Belo Horizonte: Humanitas, 2002.

Projeto Araribá: História. 7ª serie. 1 ed. São Paulo; Moderna, 2006.

[1] SOUZA, Marina de Mello e. Reis Negros no Brasil escravista: História da festa de coroação de rei congo. Belo Horizonte: Humanitas, 2002, p. 251.
[2] PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma cidade sensível sob o olhar do “outro”: Jean-Baptiste Debret e o Rio de Janeiro (1816 – 1831). Disponível em http://nuevomundo.revues.org/3669. Acesso em 11 de outubro de 2011.

[1] LIBBY,Douglas Cole; PAIVA, Eduardo França. A Escravidão no Brasil: relações sociais, acordos e conflitos. São Paulo: Moderna, 2000, p. 36.

[1] PAIVA, Eduardo França. História & Imagens. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2006, p. 17.
[2] FENELON, Déa Ribeiro. A formação do profissional de História e a realidade do ensino. In: Revista Tempos Históricos, vol. 12, 2008, p. 27.
[3] LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4 Ed., Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 1996, p. 426.

[1] BRASIL. Ministério da educação. Secretária de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: História e Geografia. Brasília, DF: MEC/SEF, 2000, p. 32.
[2] BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. 2 ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 299.
[3] Idem.
[4] LIMA, Valeria. Uma viagem com Debret. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004.
[5] Projeto Araribá: História. 7ª serie. 1 ed. São Paulo; Moderna, 2006, p. 151.


* Artigo produzido para a disciplina de Prática de Ensino em História, sob a orientação, da professora Ana Eugênia Nunes de Andrade