terça-feira, 15 de maio de 2012

História e literatura: a reforma urbana e a revolta da vacina

Tamara Moreira Santos


O ensino da história tem ampliado e transformado nas últimas décadas os campos de atuação. Passou por questionamentos sobre os agentes históricos abordados no ensino da disciplina e o uso exclusivo de fontes escritas, o que levou à utilização e leitura de novos registros, como fontes constituidoras do conhecimento histórico.

Neste breve artigo pretende-se trabalhar a literatura, uma dessas novas fontes abordadas, no contexto da reforma urbana e a Revolta da Vacina, na cidade do Rio de Janeiro em fins do séc. XIX. Alguns trechos da obra “O cortiço”, de Aluísio Azevedo, retrato do Rio de Janeiro às vésperas da abolição e da proclamação da república, publicada em 1890, serão analisadas no decorrer do estudo, para entendermos o que motivou a campanha de Vacinação do Médico Oswaldo Cruz e a reação da população.

Em fins do séc. XIX grande parte da população carioca era formada por ex-escravos, recém-libertos, que apesar de juridicamente livres continuavam economicamente dependentes e por isso mesmo, exerciam ocupações precárias e temporárias. Ainda contava com os descendentes destes ex-escravos e um grande contingente de operários pobres.

Essa população habitava antigos casarões o período imperial, amontoados no centro da cidade, popularmente denominados cortiços. A precária condição sanitária das habitações em geral, fazia com que fossem comuns epidemias com febre amarela e varíola.
“(...) como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável para sempre o verdadeiro tipo de estalagem fluminense, a legítima, a legendária; aquela em que se há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em que irmãos dormem misturados com irmãs na mesma lama; paraíso de vermes; brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente, como de uma podridão” [1].
  
O cortiço é visto como um santuário da sujeira, da impunidade, da insalubridade e da promiscuidade:
“ Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas. (...) Daí a pouco, em volta das bicas  era um zunzum crescente; uma aglomeração ruinosa de machos e fêmeas. (...) O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as saias entre as coxas para não molhar (...). As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não demoravam lá dentro e vinham amarrando  as calças ou saias; as crianças não se davam ao trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por detrás da estalagem ou no recanto das hortas”[2].

Já no início do séc. XX, no governo do presidente Rodrigues Alves, a cidade passou por uma transformação. “A capital da jovem república era uma vergonha para a nação” [3], com seus cortiços e epidemias. O presidente decidiu reurbanizar à cidade, espelhado-a na capital francesa, Paris.

Para a tarefa deu “carta branca” ao médico e sanitarista Oswaldo Cruz e ao prefeito da cidade e engenheiro, Francisco Pereira Passos.  O slogan do governo de Pereira Passos “O Rio civiliza-se” mostra a busca para alcançar o ideal de cidade para a época, e para alcançar tal civilização, a população  pobre foi expulsa dos cortiços dos centros da cidade, sob o discurso médico-sanitarista.
O cortiço era a tradução e a gênese de todos os males da cidade, eram fermentadores de doenças. As medidas de higiene tomadas pelo governo entravam em conflito com os proprietários desses estabelecimentos e com toda a população, que era inflamada por ter suas casas invadidas por funcionários da saúde pública.

O povo reagiu. Foi às ruas, exigir a não obrigatoriedade da vacina, e conseguiu, apesar de ser violentamente abafada. Muitos suspeitos foram mortos ou exilados na Amazônia. Outros grupos, como os militares, aproveitaram também do clima de revolta popular para reivindicarem suas próprias causas ideológicas.      

[1] AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Scipione, 1995. ( 1º edição: 1890).
[2] AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Scipione, 1995. (1º edição: 1890).
[3] CARVALHO, José Murilo de, in: Revista Nossa História, edição: novembro de 2004.


* Artigo produzido para a disciplina de Estágio Supervisionado sob a orientação da professora Ana Eugênia Nunes de Andrade.